Bullying - panorama mundial
Dizem que bullying é tão antigo quanto a escola. É certamente um fenômeno de grupo, e grupo em desequilíbrio, é claro.
Por ser um fenômeno sub-reptício, clandestino, dissimulado, mesmo hoje é quase impossível mensurá-lo em escala global.
Dan Olweis, professor da universidade de Beregen, na Noruega, foi um dos precursores no estudo da violência no âmbito escolar. Seus estudos não tiveram muito impacto na época, a não ser sobre poucos núcleos de pessoas interessadas. Mas em 1983, um fato alarmou os habitantes da Noruega: três meninos, com idades de 10 e 14 anos, cometeram suicídio; tudo indicava que haviam sido pressionados por situações graves de bullying. O medo que tomou conta de pais e educadores foi, paradoxalmente, combustível para o entusiasmo de Olweus, porque, para ele, o bullying era um mal a combater. Em 1989, reuniou os apontamentos no livro Bullying na escola: o que sabemos e o que podemos fazer.
O livro alcançou depressa grande notoriedade, porque não apenas apresentava e discutia o problema, como sugeria maneiras de identificar possíveis vítimas e autores, e indicava estratégias para intervir. As escolas de toda a Noruega se mobilizaram e criaram uma campanha nacional contra o fenômeno. Em pouco tempo, o número de casos foi sensilvelmente reduzido - há relatos de que o índice possa ter chegado a 50% de redução.
Na Grã-Bretanha, no início da década de 1990, uma pesquisa mostraba que 37% dos alunos de ensino fundamental e 10% dos alunos do ensino médio admitiam ter sofrido bullying pelo menos uma vez por semana. Em Portugal num universo pesquisado de 7 mil estudantes, um em cada cinco alunos (22%) entre 6 e 16 anos foi vítima de bullying na escola. Na Espanha, o nível de bullying estava em torno de 15% a 20% de estudantes em idade escolar. A partir dessas constatações, a Europa aprovou, além da legislação específica, ações integradas que incluíam países como Espanha, Itália, Alemanha e Grécia.
Nos Estados Unidos, dados coletados pelo Centro Médico Infantil Nacional Bear Facts estimam que perto de 5.700.000 meninas e meninos norte-amenricanos estão envolvidos com episódios de bullying, como autores, vítimas ou autores-vítimas. Quase 3% (cerca de 160 mil) deles passam a rejeitar a escola pretextando doenças ou realmente ficando doentes.
Atualmente, pesquisas e programas de intervenção contra o bullying vêm sendo desenvolvidos na Europa e nos Estados Unidos. As principais conclusões são as seguintes: a maior parte dos alunos entrevistados diz ter sofrido situações de bullying na escola; a maioria dos agressores encontra-se na própria sala das vítimas, principalmente nos anos iniciais; os meninos tendem a ser agredidos principalmente por meninos, enquanto as meninas são agredidas por ambos os sexos; os meninos admitem agredir mais do que as meninas; as agressões ocorrem principalmente durante o recreio e na sala de aula; a metade dos alunos entrevistados espera que o professor intervenha nas situações de agressão na sala de aula; entre os alunos que se dizem agredidos, 50% admitem que não informam o ocorrido nem aos professores nem aos responsáveis.
Será que os alunos não confiam nos professores e nem nos responsáveis? De que eles tem medo?
E um outro dado, o número expressivo de crianças envolvidas em práticas agressivas e a constatação de que o número de alvos é geralmente superior ao número de autores.
A crueldade independe de gênero, assim constatou a professora norte-americana Rachel Simmons, da Universidade de Oxford, ela própria vítima de bullying quando criança, ficou intrigada porque a maioria dos casos registrados na Europa apenas estudante do sexo masculino assumiram o seu envolvimento, tanto como autores quanto vítimas. Segundo dados coletados, e publicados em seu livro: Garotas fora do jogo: a cultura aculta da agressão nas meninas, da Ed. Rocco. No livro ela revela que a agressão praticada pelas meninas não é menos cruel que a dos meninos, e que até a manifestação de raiva das meninas segue regras e tabus sociais. Crescem aprendendo a ser gentis e a sorrir o tempo todo, sem espaço para manifestar os sentimentos que surgem na hora da raiva. A ordem é sempre disfarçar e fingir que não sentem ira. Essa castração de sentimentos afasta as meninas dos métodos convencionais usados pelos meninos, e elas utilizam os relacionamentos para ferir.
Reconhecer o fenômeno bullying numa perspectiva mundial significa ampliar os olhares e sensibilizar, para a questão, autoridades educacionais, pais e professores. Distanciar-se sugere omissão e descuido, postura que beneficia a ação do agressor, uma vez que ele pode justificar-se diante dos adultos dizendo que foi provocado pela vítima, ou que se trata de uma brincadeira. Em geral, com essas desculpas acaba conseguindo a tolerância dos educadores, mediante a minimização da intencionalidade de ferir o outro.
A acomodação e a negligência social corroboram a situação e, de certa forma, ensinam uma lição de vida muito perigosa, tanto para o agressor quanto para a vítima. Fica o aprendizado de que, na prática, na vida social funciona a lei do mais forte. E que as normas existem para ser infringidas ou dribladas de maneira esperta, atitude que, paradoxalmente, pode chegar a proporcionais certo prestígio social.
No dia 24 de fevereiro de 2008, um estudante de 18 anos, em João Pessoa, estado da Paraíba, foi encontrado encapuzado, algemado e com as roupas encharcadas de gasolina. Mais tarde descobriu-se que o rapaz era vítima de bullying na escola, e que forjou o próprio sequestro para chamar a atenção das autoridades. Na solitária dor da humilhação, esse foi o caminho que encontrou para punir os bullies que o desmoralizaram com o aviltante apelido de Chupeta de Baleia. O jovem alegou que, apesar de vítima, tinha sido sentenciado a medidas socioeducativas no ano de 2007, enquanto que os agressores nada sofreram. A desumanização da vítima, somada à impunidade dos atos perversos praticados, dera fama e prestígio aos agressores.
O bullying é uma violência que cresce com a cumplidade de alguns, com a tolerância de outros e com a omissão de muitos.
A escola, por delegação social, deve ser um local de acolhimento e de estímulo ao desenvolvimento e ao crescimento intelectual, sem desprezar as necessidades pessoais sociais e afetivas dos alunos.
Fechado em "cavernas", aprisionados pelo medo e pelas incertezas, adaptamo-nos às coisas conforme elas se apresentam; de costas para a realidade, somos incapazes de avaliar além das evidências.
De costas, desrespeitamos os que ficaram para trás; de costas, ignoramos novas perspectivaas; de costas, rotulamos pessoas e situações; de costas tomamos as sombras como realidade; de costas, acreditamos que zombar do outro é farra de criança e faz parte do convívio. Ao considerar o bullying uma brincadeira, o que se faz é atenuar a culpa, inventando um analgésico para a consciência. Sendo só uma "brincadeira" , o autor não se obriga a olhar para trás, para observar o feito devastador que causou em sua vítima.
A violência e a injustiça são problemas de todos. Quem permite a violência contro o outro está, implicitamente, aceitando a violência contra si mesmo. Mantendo essa posição de cegueira, a violência virá contra ele, mais dia ou menos dia.
Mas há mais: pode ser que a cegueira poupe do sofrimento quem acredita não ver, contudo exacerba a angústia de quem o vive.
Platão no seu livro A República, obra em que trata da pólis, da cidade, da relação entre as pessoas - ele traz a alegoria da caverna, esse "lugar" onde somos mantidos acorrentados. Lá dentro, nada conhecemos, exceto as sombras da realidade; portanto, temos apenas impressões do mundo. É preciso coragem para romper os grilhões da ignorância e do preconceito, para se lançar no mundo das idéias e sobretudo ser uma pessoa que deseja ver além do visível. Sendo assim, segundo Platão, não basta ter visão para poder enxergar. Precisamos da alma, da vontade, do desejo. Enfim, precisamos do sentido.
Cada pessoa tem uma forma peculiar de amar, de cuidar, de proteger, de acolher e de buscar a plena compreensão das coisas. Aquilo que cada um pensa e sente, com relação ao mundo e às pessoas que o habitam, é uma investigação que vai além do uso dos sentidos com que a natureza nos equipou: visão, tato, olfato, audição e paladar.
Não há crueldade maior do que, propositadamente, desumanizar uma pessoa a ponto de roubar-lhe o desejo de viver. E o único objetivo do bullying é humilhar uma pessoa a ponto de desumanizá-la.
A valia de uma vida está sustentada em valores: na sensação de importância, de reconhecimento, de acolhimento, de pertencimento, constatados em mensagens que chegam por meio de olhares, de fala e de atitudes. Quando essas mensagens, porém, chegam distorcidas, as machucaduras são profundas.
O conhecimento nos liberta das amarras e das muralhas construídas para nos proteger, muitas vezes, de nós mesmo. E a liberdade nos faz buscar os porquês, que são renovados diariamente pelos desejos manifestados. Na ausência, a ignorância nos faz prisioneiros do imediatismo e da perspectiva limitada, roubando-nos a liberdade.
As amarras que nos acorrentam no interior da caverna representam o medo, a comodidade, a inércia. O mundo visível é aquele em que a maioria da humanidade está presa, iludida com as sombras da realidade. O outro mundo pertence àqueles que conseguem superar a ignorância, rompendo com as correntes que os aprisionam no subterrâneo e erguendo-se para a luz em busca do essencial, do significativo.
Supostamente protegidos, vivemos num mundo de cegos, distanciando- nos das pessoas reais. Camuflados pela ignorância intrínseca ao ser humano, inventamos uma realidade que nos parece cômoda. A violência é um dos frutos da ignorância, entre outros motivos pela aceitação de crenças muitas vezes ultrapassadas e que não correspondem à verdade absoluta ou parcial.
O panorama global emerge das ações locais. Portanto, o universal não é uma visão surrealista, mas real, acontecendo bem aqui, ao nosso lado, debaixo de nossos olhares viciados por sombras. Por isso, o escritor russo Leon Tolstoi sugere: "Se queres ser universal, canta a tua aldeia." Estar conectado com as questões universais não nos exime da responsabilidade de agir em nosso meio imediato.
Pedagogia da Amizade - bullying: sofrimento das vítimas e dos agressores, Gabriel Chalida (resumo), Ed. Gente
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