domingo, 26 de abril de 2009

A LENDA DO ESTADO INCHADO


Cândido Vaccarezza: A lenda do Estado inchado

Uma das recorrentes acusações da oposição contra o governo Lula refere-se ao suposto aparelhamento e inchamento do Estado. A distorção é motivada pela guerra política, em que a verdade é a primeira vítima. O Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) acaba de publicar pesquisa comparativa sobre as dimensões das máquinas públicas de diferentes países. Os resultados desmentem a lenda de que o Estado nacional tem excesso de pessoal.

O governo entende como essencial o resgate do papel do Estado na promoção do desenvolvimento social e econômico do país. A prática faz ainda mais sentido agora, com o ressurgimento do neokeynesianismo. A defesa do Estado mínimo soa totalmente antiquada, sobretudo depois das decisões tomadas na reunião do G20.
O dados do Ipea desmontam as teses de quem defende o desmonte do Estado brasileiro.
No trabalho "Emprego Público no Brasil: Comparação Internacional e Evolução Recente", do Ipea, usou-se metodologia em que se define o conceito de emprego público na sua forma mais ampla, consagrada pelas publicações da OCDE. Isto é, no estoque do emprego público, incluem-se não apenas os trabalhadores da administração direta em todas as esferas de governo, mas também as ocupações da administração indireta e os empregados de empresas estatais.

Por esse critério, em 2005, o total da mão de obra empregada no serviço público era 39,2% na Dinamarca, 30,9% na Suécia, 24,9% na França, 14,8% nos EUA, 14,7% na Alemanha e apenas 10,7% no Brasil. Nossa máquina pode padecer de outros males, mas não está inchada em comparação com esses países ricos. Tampouco em relação aos nossos vizinhos da América Latina podemos ser considerados um Estado inchado: estamos atrás de países como Costa Rica, Venezuela, Uruguai, Argentina e Paraguai.

O governo FHC levou à demissão milhares de funcionários de estatais, principalmente por meio da privatização, e não recuperou vagas. Em seus oito anos de governo, por exemplo, as escolas técnicas federais foram reduzidas e levadas ao sucateamento.

O governo Lula as resgatou, a educação passou a ser prioridade. Até 2002, o Brasil tinha 140 escolas técnicas, instaladas ao longo de 93 anos. Desde a posse de Lula, foram implantadas 75 novas escolas técnicas e, até o fim de 2010, terão saltado para 354 unidades, expansão de 150%. Ninguém pode discordar de que é preciso contratar professores e funcionários.

O Brasil contava, em agosto de 2008, com 1.007.226 servidores ativos civis e militares da União, pelo critério da OCDE. Quando contabilizados apenas os servidores civis do Poder Executivo federal na ativa, chegava-se a 533.434 servidores. É verdade que a curva de redução de servidores federais ativos, iniciada em 1990, foi interrompida em 2003. Mas o quantitativo de 2008 é semelhante ao total de servidores civis do Poder Executivo federal ativos em 1997 (531.725) e consideravelmente inferior aos 705.548 ativos de 1988.

Os gastos com pessoal ativo e inativo da União de 1995 a 2008 (dados referentes apenas ao orçamento fiscal e da seguridade social, ou seja, excluídas as despesas das estatais federais) mostram que as variações foram pequenas e as despesas estão em queda.

Com efeito, a União gastava, em 1995, 5,34% do PIB. Em 2002, esse gasto representou 5,08% do PIB e, no ano passado, 4,66% do PIB. Há uma tendência declinante, ainda mais significativa ao considerar que o governo Lula restabeleceu a prática da realização de concursos públicos, com substituição de terceirizados por servidores efetivos, a fim de dar eficiência ao serviço público e transparência aos métodos de contratação.

O quadro positivo não demonstra, porém, inexistirem problemas no serviço público. Pelo contrário. Muito tem que ser feito em matéria de aumento da eficiência dos serviços prestados e de aumento da sua oferta. Em setores vitais como saúde, educação e segurança novas contratações precisam ser feitas com urgência.
É necessário ressaltar que o esgotamento do modelo neoliberal em todo o mundo impõe uma maior presença do Estado na economia, desde que sejam evitadas as práticas do patrimonialismo e da privatização do Estado, como ocorreu no governo do PSDB e PFL (atual DEM). No período FHC, a máquina pública era extensão dos interesses privados, tanto de membros do governo como de seus apoiadores.
O Brasil conseguiu sobreviver, pelo menos em parte, à ofensiva da era Thatcher-Reagan. A sociedade reagiu e evitou que o neoliberalismo nos levasse ao desastre completo. Por isso, o país tem hoje instrumentos para enfrentar a crise internacional. O desafio foi dar um salto do período em que o Estado mínimo era a ideologia dominante para outro modelo, em que se busca recuperar a estrutura, com mais eficiência à máquina pública.

*CÂNDIDO VACCAREZZA , 53, médico, é deputado federal pelo PT-SP e líder do partido na Câmara dos Deputados.
Artigo publicado originalmente na seção Opinião do jornal Folha de S. Paulo (22/04/09).



quinta-feira, 23 de abril de 2009

Abdias: Há racismo contra Joaquim Barbosa


Na década de 40, quando o movimento negro era uma ilha, o dramaturgo Nelson Rodrigues cravava nas gazetas: Abdias do Nascimento é "o único negro do Brasil". E não houve quem o desmentisse. A "flor de obsessão" admirava no ator e ativista negro a "irredutível consciência racial", a coragem de esfregar a "cor na cara de todo o mundo".
Abdias, 95 anos, segue atento às novas gerações do movimento negro. Vibrou com a vitória do presidente Barack Obama, nos Estados Unidos. E hoje, a partir da leitura dos jornais, se "orgulha" da atuação do ministro Joaquim Barbosa no Supremo Tribunal Federal (STF).
- Estou orgulhoso de ter um juiz à altura da situação em que se encontram todos os milhões e milhões afrodescendentes - declara.
Primeiro negro na suprema corte brasileira, Barbosa fez ontem acusações públicas ao presidente do STF, Gilmar Mendes. "Vossa excelência não está na rua, não. Vossa excelência está na mídia, destruindo a credibilidade do Judiciário brasileiro", atacou. Mendes pediu "respeito". Barbosa ainda prosseguiu: "Vossa excelência quando se dirige a mim não está falando com os seus capangas do Mato Grosso, ministro Gilmar. O senhor respeite."
Com esse revide, a briga tomou uma feição racial. Abdias não foge à pergunta:
- Acho que houve, sim, um viés racista naquela maneira que o presidente do Supremo respondeu a ele, logo no começo da discussão.
Para o fundador do Teatro Experimental do Negro, em 1944, a presença de Joaquim Barbosa no STF causa desconforto aos colegas. Ex-deputado federal e ex-senador, Abdias conta que foi "esmagado" no Congresso. "Sempre quando ele (o negro) ergue a voz, já é um crime", afirma. "Há um racismo na Justiça brasileira."

Terra Magazine - A atuação do ministro Joaquim Barbosa no STF fortalece o movimento negro? O senhor viu o embate com o ministro Gilmar Mendes?
Abdias do Nascimento - Vi hoje nos jornais. Bom, eu acho que ele respondeu à altura, de acordo com a postura dele, a dignidade de juiz. Ele respondeu à altura. Achei que foi muito digna a postura. E ele correspondeu ao que esperávamos dele numa situação daquela.
TM - Quando os ministros reagem a uma postura como a de Joaquim Barbosa, há um viés racialista? Eles se sentem incomodados com um negro?
AN - Eu acho que sim.
TM - Por ele ser o primeiro negro no Supremo?
AN - Acho que houve, sim, um viés racista naquela maneira que o presidente do Supremo respondeu a ele, logo no começo da discussão.
TM - É uma irritação prévia?
AN - Aliás, o jornal dá uma história anterior de incidentes e dá a enteder que já havia uma predisposição.
TM - Como o senhor vê a presença dos negros na Justiça brasileira?
Ainda é incipiente?
AN - É muito incipiente. E a Justiça é racista mesmo. Estou de acordo: há um racismo na Justiça brasileira. Acho que os negros são olhados como se ainda fossem escravos.
TM - Quando Joaquim Barbosa ergue a voz, é como se já estivesse errado?
AN - É claro que sempre quando ele ergue a voz, já é um crime. Já é um crime. Porque o negro já nasce criminoso aqui no Brasil.
TM - A vitória de Barack Obama foi importante para fortalecer a presença dos negros em nossas instituições?
AN - Sim. Eu avalio que a vitória dele teve uma importância e uma influência em toda a população negra no mundo. Porque mostra que os negros podem comandar a primeira nação do mundo. Isso é um crédito formidável para os Estados Unidos.
TM - O senhor tem essa luta desde a década de 30. Como avalia, com essa trajetória, o crescimento do poder político do negro?
AN - Claro que fico muito emocionado com essa campanha que acompanho aqui nos meios de informação. Acompanhei a luta dele (Obama), sofri com o que ele deve ter sofrido nessa campanha. Não foi uma coisa fácil. E o desassombro de ver um negro liderar no mundo. No Brasil, que tem essa fama toda de democrático, me lembro como fui esmagado quando fui senador. E, afinal de contas, senador não é nada, não tem poder nenhum. Imagina lá nos Estados Unidos, um chefe do Executivo... TM - No teatro, o senhor também foi pioneiro na questão racial. Praticamente, só Nelson Rodrigues lhe era solidário.
AN - Foi. Nelson Rodrigues era formidável. Ele não se atrapalhou com a encenação que a sociedade brasileira faz sobre o racismo. Fazem um teatro.
TM - Tem gostado, então, do ministro Joaquim Barbosa?
AN - Gostei muito. Estou orgulhoso de ter um juiz à altura da situação em que se encontram todos os milhões e milhões afrodescendentes.

Por Claudio Leal para Terra Magazine

quinta-feira, 16 de abril de 2009

A crise econômica e a crise ecológica de um ponto de vista ecossocialista

1. Abordagem e alternativa ecossocialistas
A atual crise econômica coincide com uma crise ecológica. A crise econômica é sistêmica. A crise ecológica é global. Existe uma relação de causalidade entre elas donde a necessária abordagem teórica abrangente. A crise econômica é uma crise do sistema capitalista. A crise ecológica é uma crise da relação entre os humanos e a natureza ou mais recentemente entre o modo de vida da sociedade capitalista moderna e os ecossistemas, donde a pertinência da abordagem do ponto de vista de classe, embora não exclusivamente. A crise econômica questiona o modo de produção capitalista, baseado no regime de propriedade privada dos bens de produção e na desigualdade do usufruto do produto social: atinge a todos desigualmente e de forma mais cruel aos trabalhadores e povos inteiros incluídos de forma marginal ao sistema. A crise ecológica atual, derivada deste sistema (e secundariamente da contribuição dada pelas experiências do "socialismo real") também atinge a todos desigualmente e de forma mais grave os mais pobres sujeitos à injustiça ambiental, embora em escala escatológica possa atingir a todos independente de classe, nacionalidade ou situação geográfica - o que lhe dá também uma dimensão planetária. A alternativa radical às crises ecológica e econômica, só pode ser um novo modo de produção e consumo voltado para o atendimento das necessidades materiais, culturais, espirituais, de todos e todas, guardadas as diferentes identidades coletivas e individuais; definido e gerido democraticamente por homens e mulheres livres; respeitando-se os limites e tempos dos ciclos de vida dos ecossistemas naturais. Essa é a abordagem e a alternativa ecossocialistas.


2. A crise econômica
A crise econômica é melhor percebida por todos e todas porque atinge imediatamente a capacidade de investir, de consumir, ou simplesmente de prover a subsistência de muitas famílias. Seus indicadores são claros para os trabalhadores e trabalhadoras e para o povo em geral: aumento do desemprego; redução da renda familiar; apelo ao seguro desemprego ou ao seguro social; e em alguns segmentos a perda ou deterioração do valor de suas economias, de seus bens, ou a incapacidade de pagar as prestações ou hipotecas dos mesmos. Para muitos capitalistas geram perdas com impossibilidade de honrar compromissos; falências das empresas, embora alguns disto se aproveitem para aumentarem suas riquezas e poder. A grande novidade dessa crise é a virtual falência do sistema financeiro dos Estados e da Europa, que só não entrou em colapso graças à intervenção do Estado. Do sistema financeiro se generalizou, para os demais setores e países, e tende a se aprofundar não obstante a intervenção dos Estados com gigantescos recursos públicos.
Alguns indicadores da crise econômica nos revelam a sua ordem de grandeza: 1)a queda do PIB mundial em 2009 pode ser de menos 2,75% segundo a OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico); ou de menos 0,5% a menos 1,0% segundo o FMI (Fundo Monetário Internacional). O PIB dos países mais desenvolvidos, membros da OCDE, segundo esta terão redução de 4% a 7%, em 2009; 2) Indicadores de desemprego: nos países do G-7 cerca de 36 milhões trabalhadores desempregados ao final de 2010 (OCDE); para o mundo todo a OIT (Organização Internacional do Trabalho): estima um desemprego da ordem de 50 milhões de trabalhadores, em 2009.


3. A crise ecológica
A crise ecológica atual tem forte contribuição das atividades humanas. Há indicadores ecológicos que atestam a contribuição humana para o aquecimento global da Terra nos últimos 300 anos, vale dizer, no período de prevalência do capitalismo (com a contribuição menor do "socialismo real"); e indicadores ecológicos que mostram a degradação dos ecossistemas naturais de forma mais acelerado nos últimos 50 anos, quando o capitalismo entrou em sua fase de globalização e sob a hegemonia neoliberal.
Uma análise da crise ecológica, com recorte temporário mais longo, pode ser vista através dos Relatórios do Painel Intergovernamental de Mudança Climática (IPCC, ONU), de 2007. No primeiro relatório os cientistas falam com mais de 90% de certeza que as atividades humanas são responsáveis pelo incremento da temperatura média do planeta em 0,4ºC devido ao salto da concentração de CO2 na atmosfera de 280 ppmpv (partes por milhão por volume) em 1750 para 368 ppmpv em 2006. Sem alterações no atual modo de produção e consumo a temperatura média do planeta pode se elevar em até mais 4ºC, neste século - com graves conseqüências ecológicas, sociais e econômicas. Para barrar a elevação da temperatura média da terra em até mais 2ºC até 2050 seriam necessários investimentos da ordem de 3% do PIB mundial até 2030.
A"Avaliação Ecossistêmica do Milênio" (outro estudo da ONU, de 2005) indica que mais de 60% dos serviços ambientais dos ecossistemas - água doce, pesca, regulação do solo e do clima - registraram alto grau de degradação nos últimos 50 anos, gerando bem estar para parte da humanidade e perdas em grande medida irreversíveis da biodiversidade (100 a 1000 vezes mais rápido que antes da existência da humanidade) e da capacidade da natureza prover serviços fundamentais como a purificação do ar e da água que já atingem 2 bilhões de pessoas; certamente os mais pobres.
Sabidamente estamos vivendo uma sociedade urbana, com altos índices de poluição do ar nas grandes cidades; dificuldade para destino adequado para os resíduos sólidos; esgotamento sanitário insuficiente; transporte e moradias inadequados para milhões de pessoas, sujeitas às intempéries com graves repercussões à sua saúde.

4. A relação entre crise econômica e crise ecológica
A crise ecológica está relacionada ao modo de vida determinado pelo capitalismo moderno, tanto em seus ciclos de crescimento como em seus ciclos de crise, como mostram os relatórios insuspeitos da ONU. Para se enfrentar adequadamente a crise ecológica será necessária uma reversão e reorientação da base econômica hoje existente, tanto industrial quanto agrícola, sob novas bases tecnológicas bem como outro padrão de consumo, em tal grandeza que não será suportável para o sistema capitalista
A atual crise econômica, contudo, pode se resolver dentro do sistema capitalista, à custa da exclusão da maioria da humanidade e o não enfrentamento radical da crise ecológica, ou até mesmo com medidas que a agravem. Ainda que não se enfrente a crise ecológica como seria necessário, parece fundada a esperança de que a cidadania ambiental duramente conquistada exigirá dos governantes medidas anti crise ambiental no bojo das medidas anti crise econômica.

5. A saída da crise tem que ser negociada e tem que incluir a dimensão ambiental
A crise de 2008 se dá em contexto histórico diferente da crise de 1929. Em 1929 os EUA eram potência hegemônica ascendente, agora está em descenso. A restauração capitalista incorporou ao sistema a antiga União Soviética (e todo o "bloco soviético") em condição econômica subalterna sem renúncia à condição de superpotência militar; a Comunidade Européia se tornou uma entidade forte econômica e politicamente; países capitalistas emergentes, especialmente os BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) tornaram-se atores importantes na economia e na política, destacando-se dentre eles a China. A política unilateralista dos EUA nos últimos 10 anos reflete sua resistência a reconhecer outros centros de poder no plano internacional, o que tende a arrefecer nesta crise. Por outro lado não há conflito político e ideológico que justifique uma guerra de grandes proporções - afora as limitações impostas pelas armas nucleares - e as guerras imperialistas sob o manto ideológico da "guerra ao terrorismo" são localizadas.
Os Estados Unidos não estão fortes o suficiente para impor as suas decisões e não estão tão fracos para aceitarem imposições da Europa ou dos BRICs (ou da China). Não há alternativas senão negociar. É o que está se fazendo no chamado G-20 (e não mais no antigo G-7), em Londres (2009), e tende a se estender para outros foros internacionais e por mais tempo, até que se construa uma nova hegemonia em escala global.
De igual forma a potência ainda hegemônica, os Estados Unidos, não poderá se omitir como já o fez antes; nem tão pouco recusar o enfrentamento da crise ecológica, como de fato não o fez agora, ainda que marginalmente nas negociações do G-20 e em seus anunciados planos nacionais anti crise (investimentos em energias alternativas, energias limpas, com redução das emissões de CO2, etc.).

6. Considerações Gerais
a. A crise econômica atual, provocada pelo domínio sem contraste nem controle do capital financeiro e seu descolamento da economia real, coincide com uma crise ecológica sem precedentes na história da humanidade (já ocorreram crises ecológicas mais graves na Terra mesmo antes da espécie humana) com forte contribuição das atividades humanas. Ou seja, a crise ecológica atual é decorrência do modo de vida capitalista.

b. A percepção da crise econômica é mais imediata porque ameaça o emprego, a renda familiar, as expectativas do bem estar das pessoas; afora o domínio do assunto sobre a mídia. A percepção da crise ecológica é crescente, em todo o mundo (e em alguns lugares seus efeitos atingem diretamente famílias, comunidades, populações inteiras), particularmente a partir dos relatórios do IPCC sobre mudanças climáticas de 2007, constituindo-se em forte corrente de opinião pública que não pode ser menosprezada. Essas percepções geram possibilidades de enfrentamento conjunto das crises econômica e ecológica, de um ponto de vista de classe dos trabalhadores e da maioria da população

c. Na conjuntura atual é inevitável o acirramento da luta de classes, dada a tendência dos capitalistas de fazerem recair sobre os ombros da classe trabalhadora o ônus da recuperação da crise econômica (desemprego, redução salarial, acesso ao fundo publico, etc.) assim como a busca do lucro fácil com a conversão dos ativos ambientais em matérias primas ou mercadorias. Sinais da resistência dos trabalhadores já foram dados em greves e manifestações pelos mais variados países. Sinais da resistência ambientalista se fizerem presentes, em separado ou em conjunto com as manifestações dos trabalhadores, agora em Londres, quando da reunião do G-20.

d. Os governos tão atenciosos (e até graciosos) aos interesses dos banqueiros e grandes corporações não podem se esquivar de atender algumas demandas sociais e ambientais sob pena de se deslegitimarem e acirrarem a luta social e política. É o que podemos ver no comunicado do G-20, em Londres; e também nas medidas anti cíclicas anunciadas pelos governos norte-americano e europeus. A visão de futuro orienta as bandeiras de luta do presente. Elas são politicamente válidas.

e. Mas não haverá alternativa à crise econômica dentro do sistema capitalista que seja capaz de resolver sua incapacidade de atender as necessidades da maioria da humanidade, tanto os trabalhadores dos países capitalistas desenvolvidos quanto a maioria dos povos com inserção marginal no sistema. Donde a oportunidade de recolocar na ordem do dia se não a eminência da alternativa socialista, mas a discussão sobre a sua possibilidade, inclusive para assegurar os direitos dos trabalhadores e dos povos dos países "não desenvolvidos", ameaçados por medidas anti-crise econômica. Por outro lado não haverá alternativas à crise ecológica dentro do sistema capitalista e da sua ordem política, ainda que os governos adotem algumas medidas propostas pela luta socioambiental e que essas medidas sejam importantes para se preservar determinados ecossistemas e espécies ameaçadas, ou para retardar as mudanças climáticas catastróficas à preservação da vida no planeta. Neste período de crise se torna mais importante ainda a luta dos trabalhadores, a luta dos povos dos países não desenvolvidos, a luta socioambiental - sempre que possível unidos - para assegurar direitos econômicos, sociais, culturais e ecológicos já conquistados e acumular forças no sentido de amadurecer uma consciência, uma perspectiva, de se construir uma sociedade que seja ao mesmo tempo socialista, democrática e sustentável.


Gilney Viana é membro do Diretório Nacional do PT.Texto apresentado durante a Conferência da Esquerda Socialista do PT.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Entrevista: TARSO GENRO


Tirei a presidência da cabeça, diz Tarso Genro

Há dois anos, o atual ministro da Justiça, Tarso Genro, tomou uma decisão: não seria candidato à Presidência da República em 2010. Apesar de ter seu nome constantemente ventilado nos bastidores de Brasília, ele acreditava que sua indicação para a corrida sucessória poderia dividir o Partido dos Trabalhadores. Em entrevista ao Jornal do Terra, ele fala sobre a candidatura da ministra Dilma Rousseff, defende as operações da Polícia Federal e faz um balanço do governo Lula. Acompanhe os principais trechos da entrevista:
Jornal do Terra - O que o senhor destacaria de melhor e de pior nos quase seis anos de governo Lula?
Tarso Genro - O melhor é participar de uma verdadeira revolução democrática no País. Todos os setores e classes sociais foram colocados no mesmo plano de diálogo com o governo e no processo de produção de políticas públicas. Estamos mudando a estrutura social do Brasil, incluindo pessoas na sociedade formal, na educação, em uma vida civil digna. O que tem de pior são os sobressaltos como ministro. Assumi vários ministérios que sofreram com contingenciamentos por causa de situações imprevistas.
JT - Como o que está acontecendo agora por causa da crise econômica.
TG - Sou uma pessoa muito metódica, muito organizada. Não está entre os meus defeitos ser espontâneo. Venho acompanhando o governo e sempre tenho aquele planejamento que se faz cuidadosamente com sua equipe. De repente isso desmorona e é preciso fazer um esforço enorme para negociar, para repor recursos. Isso é o que mais perturba e atrapalha o trabalho.
JT - Às vezes o senhor entra em polêmicas, como no caso da Lei da Anistia, quando teve problemas com militares, e quando discutiu com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) no caso das algemas usadas na prisão do empresário Daniel Dantas. O senhor se considera um provocador?
TG - Em nenhum momento perdi minha condição de ser um homem de esquerda - e o presidente Lula nunca me pediu para renunciar às minhas posições como homem de esquerda democrática, pluralista. Não abandonei algumas utopias que vêm dessa formação libertária que está na origem da esquerda mundial e brasileira. Assumo determinados temas como posições políticas que pretendo debater fora e dentro do governo. Não acho que seja provocação. Nunca assumi nenhuma posição de desrespeito aos adversários. Nunca ofendi ou humilhei ninguém. Na questão da tortura, as pessoas condenadas pela Justiça Militar foram expostas publicamente e anistiadas depois. Todo mundo conhece o passado e o que fizeram essas pessoas. Os torturados ninguém conhece. Eles não assumem essa identidade, muitas vezes negam que houve tortura. Acho justo que a sociedade avalie isso. Nunca propus revisar a Lei da Anistia. Sobre as algemas, acho que a súmula das algemas tem de ser respeitada. Não podemos algemar pobres e miseráveis e proteger publicamente os ricos. Que não se algeme ninguém. São questões como essa que são polêmicas, mas que não ofendem ninguém. Não me considero um provocador. Acho que tenho posições firmes - que às vezes podem até estar erradas - e sustentáveis.
JT - Que desfecho o senhor espera para o caso Cesare Battisti?
TG - Entendo que o Supremo vai manter meu despacho. Mudar a jurisprudência em cima de um caso concreto, sem nenhuma fundamentação diferente, seria uma mudança tão brusca e radical que seria uma ruptura com a tradição jurídica libertária desde a Constituição de 88, sob a questão dos políticos que aqui recebem acolhimento. Acho que essa discussão é importante, que as posições diferentes da minha são válidas. Decidi de acordo com as decisões anteriores do Supremo, com a tradição do direito internacional sobre essas questões e com uma visão histórica do que ocorreu naquela época. Isso nada tem a ver com um desabono à democracia italiana, muito menos aos seus juristas e magistrados.
JT - As operações da Polícia Federal agradam à opinião pública, mas não aos políticos, empresários, analistas, advogados, que muitas vezes consideram essas operações abusivas e midiáticas. O senhor vê algum excesso que precisa ser contido?
TG - Esse desagrado se origina de uma situação: a Polícia Federal não tem critério de classe para investigar. Ela investiga com o mesmo rigor e profundidade traficantes de drogas, pessoas que cometem delitos contra o Estado, pessoas que estimulam a corrupção, lavam dinheiro, traficam armas. Nos últimos anos, algumas investigações pegaram a elite econômica do País, que tem relações com a elite política. É uma minoria, mas que causa grande impacto. Ninguém se queixa de uma operação da PF que prende pessoas envolvidas com tráfico de drogas. Quando a operação bate no pessoal endinheirado sempre tem uma repercussão maior. Assim como não tem critério de classe, a PF não tem preconceito de classe. E essas investigações continuarão sendo feitas. Parte da imprensa trata de maneira diferente quando vê um secretário ou banqueiro americanos algemados. É uma demonstração da superioridade americana. No Brasil, é diferente. Aqui, é visto com preconceito, como se aquelas pessoas estivessem sendo presas por serem ricas.
JT - Qual deverá ser o destino do delegado Protógenes Queiroz? Há quem diga que ele será expulso da PF, o que representaria uma vitória do crime organizado.
TG - Quanto à primeira parte da pergunta, não tenho como afirmar. A corregedoria está fazendo os devidos inquéritos e investigações. Presumidamente, ele responderá um processo judicial. Não acompanho os detalhes porque não é minha função. Quanto à proteção do crime organizado, em absoluto. As investigações deste delegado - qualquer delegado - são sobre ilegalidades que ele cometeu na sua função. Não sobre legalidade, não quando acertou. O que é investigado é se ele andou fora de lei e por quê. Se for verificado que ele andou fora da lei, quais são as conseqüências disso para a corporação. O crime organizado só tem a perder. Ilegalidades que delegados cometem em inquéritos levam a absolvição dos bandidos e daqueles que cometem qualquer violação do Código Penal. Uma atitude vanguardista de um delegado, qualquer atitude de justiceiro que ele tome, pode resultar na nulidade do inquérito e, portanto, favorece o crime.
JT - As eleições de 2010 serão difíceis? O lulismo é maior que o PT, é até mundial...
TG - Depois que o Obama disse que ele é o cara. Até eu me senti lisonjeado. Afinal, o Lula é nosso presidente de honra.
JT - Nas eleições de outubro do ano passado para prefeito vimos que a popularidade do Lula não se transfere facilmente para seus candidatos. As próximas eleições serão difíceis?
TG - São eleições difíceis. Isso não tem a ver com a Dilma ser candidata. Qualquer um de nós teria dificuldades. Não temos a popularidade e a capacidade política do Lula. Ninguém. Um tem qualidades "a", outros "b". Mas nenhum reúne todas as qualidades políticas do Lula. Em segundo lugar, a oposição, ao que tudo indica, terá um candidato forte: ou o Serra ou o Aécio. São governadores de Estado, têm simpatizantes em todas as classes sociais. Eles podem aproveitar um certo ranço, um certo preconceito que ainda paira sobre o PT em boa parte da grande imprensa.
JT - A pré-candidata Dilma Rousseff sofre resistência dentro do PT porque dizem que ela tem pouca militância no partido. O senhor chegou a se imaginar candidato petista à presidência?
TG - Não. Passava pela cabeça de alguns companheiros essa idéia. Há mais de dois anos tirei essa idéia da cabeça. Mostrei aos meus companheiros que não seria candidato porque não haveria dentro do partido uma coesão política majoritária em torno do meu nome em função das lutas políticas internas que travei em momentos difíceis - e não me arrependo de tê-las travado. Se o presidente eventualmente pensasse no meu nome, o partido ia entrar num conflito muito grande, prejudicando a unidade o partido. Tirei isso da cabeça há muito tempo. Quando as pessoas falavam, até achava que eu, o Patrus, o Jacques Wagner, o Aloísio Mercadante, o José Dirceu. Falavam em vários nomes e as pessoas especulavam. Há mais de dois anos tirei isso da cabeça completamente sabedor de que o presidente faria uma opção política e que ela não se dirigiria ao sul. Fui o primeiro a chamar a atenção para a Dilma, dizendo que ela poderia ser uma boa candidata se aprofundar as relações com o partido. Naquele momento isso causou um escândalo, as pessoas ficaram com bico empinado, outras me criticaram e algumas acharam uma boa idéia. Isso teve um efeito positivo porque a Dilma começou a dar mais atenção ao partido. Não é um demérito não estar no partido, não ter vínculos. O que é um demérito é a pessoa querer ser candidato à presidência e não saber que tem de ter vínculos com o partido que vai lutar por ela. Não me arrependo de ter feito a afirmação. A partir de então, várias pessoas passaram a dizer que ela tem de estreitar a relação. E ela tem feito. É uma candidata que tem condição de nos representar. O importante é que o partido tem um candidato que confie, que preste atenção no partido, sem perder a amplitude que tem de ter o presidente da República.
JT - E o senhor, vai se candidatar ao governo gaúcho ou vai voltar a disputar a vaga no Supremo?
TG - Essa história do Supremo surge de vez em quando na imprensa. Não estou disputando vaga no Supremo, nunca disputei. Nunca fui sondado para ir ao Supremo e não aceitaria ir. Não faz parte do meu projeto, do meu roteiro como sujeito público. Não me imagino no STF por uma série de razões, e não são razões que degradariam o convite. Acho estranho quando alguém diz que estou preiteando novamente quando nunca pleiteei. Em relação ao governo do Estado, é uma possibilidade. Mas não sou a única opção no Rio Grande do Sul e não estou preparando uma campanha para disputar uma prévia. Estou participando de uma negociação de alto nível no meu Estado para ver qual será o melhor nome para a eleição estadual. Se a maioria achar que sou eu, posso ser candidato sem qualquer tipo de conflito. Estou maduro politicamente. Já cometi muitos erros, aprendi muito. E tive bons acertos. Adquiri uma certa maturidade num determinado momento que você começa a ver os conflitos internos do partido de maneira diferentes. Antes, via como elemento de vitalidade, de produção de uma estratégia linear do partido. Hoje, sou mais uma pessoa da consertação, da formação de bloco de negociação. Até porque o PT já atingiu sua melhor possibilidade, que é a eleição do presidente Lula. Daqui para adiante tem de se renovar como partido para dar um salto como partido dirigente de uma grande frente política, de consolidação da democracia e de promoção de profundas mudanças democráticas e sociais no Brasil.

Redação Terra

quinta-feira, 9 de abril de 2009

A COR DA RIQUEZA E DA POBREZA


O Presidente Lula afirmou ao receber o Primeiro Ministro Britânico Gordon Brown em Brasília (26/3) que a riqueza tem cor e que a crise econômica atual foi causada por "gente branca, de olhos azuis".


Para uma boa parte da consciência democrática nacional a pobreza da população brasileira tem cor, ela é negra na grande maioria, é o que está demonstrado nas estatísticas sobre cor e desigualdades sociais no Brasil.
A história da pobreza no Brasil sabe-se, ela começa com a escravidão dos africanos que durou cerca de quatro séculos se encerrando renitente no fim do século XIX (1888) por pressão do capitalismo global na época controlado pelo Império Britânico. Com a libertação dos escravos imposta pelos inglêses às véspera do século XX, o então, Império brasileiro enfraquecido paga com a Abolição seu tributo à emergente República que vai deixar intocados os bens e privilégios da família imperial e do latifúndio escravocrata não realizando até hoje a reforma agrária. Este Império quase caricato do modelo monárquico europeu fez assim o trabalho sujo da história que não estava nos princípios de governo da República, mas que esta criminosamente omite-se deixando os ex-escravos à míngua para se virarem em busca do trabalho e da moradia que a escravidão garantia na medida de sua reprodução.
A busca pelo trabalho cada vez mais qualificado da era industrial legou ao sub-emprego, ao trabalho desqualificado e a marginalidade urbana e rural a maioria da população negra tal como se prolonga até hoje no século XXI. O capital, o poder político, o controle do Estado, dos recursos públicos, o dirigismo e a apropriação cultural foram mantidos pelos descendentes de europeus aqui no Brasil. Tanto localmente como nos centros de controle globais a hegemonia tem um forte componente racial o poder exercido pela tal "gente branca de olhos azuis" que o Presidente Lula disse ousadamente como metáfora dessa situação diante do Primeiro Ministro Britânico, exemplar representante do capitalismo. O que não deixa de ser tanto uma bravata política do Presidente Lula quanto uma realidade do tipo de poder exercido no mundo e que pode ser visto por este prisma da racialização, e que apenas constata o componente racial como um mecanismo do poder do qual o capitalismo tem se utilizado para manter sua hegemonia.
O mecanismo de poder racismo é herdado do período monárquico e dele se valeu também a burguesia para se legitimar construindo um 'discurso científico' que servia para naturalizar numa escala racial seu controle social. É uma ideologia poderosa que assegura grande parte de sua força política e que se mostra para a maioria da população negra como de resto da população pobre, principalmente através da polícia que continua fazendo o mesmo trabalho sujo que feito pela monarquia brasileira ao fim da escravidão e continuado pelo Estado republicano e que grande parte da sociedade atual não apenas se omite quando não estimula pedindo mais repressão para os favelados como se observa cotidianamente na mídia.
Mesmo com a formação de um outro saber que nega a "existência" das 'raças' tornando este apelo um estigma e um jogo de palavras. Apesar de tentar desqualificar conceito científico de raças humanas sua validade continua plena no jogo político, esta mistificação não a eliminou como um 'dispositivo de poder' da cena polítca e social e por isso o Presidente Lula pode ousar legitimamente em nome dos negros, índios e pobres em geral demarcando nestes termos quem fabricou e quem é prejudicado pela atual crise.

Quem não ousaria dizer o que disse o Presidente Lula é o Presidente dos EUA Barak Obama.
No momento em que o Presidente Lula racializa o debate ele deixa espantados os puristas negros e brancos que se acostumaram a uma ideologia anti-racial de origem de classe e que por isso se recusam a perceber o mecanismo racial de poder no mundo. Esta desigualdade vista como natural por uns e de classe por outros está estampada na cor da pobreza no Brasil e no mundo, mas que os puristas - liberais e esquerdistas - se fazem de míopes ao menos agora para a cor da riqueza.


por Ricardo

terça-feira, 7 de abril de 2009

'Inchaço da máquina' é mito

Pesquisa do Ipea aponta que 'inchaço da máquina' é mito
Uma pesquisa sobre emprego público, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), chegou a uma conclusão surpreendente: a máquina pública brasileira não está inchada. Comparada à de países desenvolvidos e com os da América Latina, a proporção de servidores públicos na faixa da população economicamente ativa é uma das menores (10,7%), segundo dados computados em 2005.
Em países como Dinamarca e Suécia, mais de 30% dos ocupados estão trabalhando para o estado. Em outros que têm o setor privado como alicerce, caso dos Estados Unidos, o percentual é de 14,8%, também usando dados de 2005.
O pesquisador Fernando Augusto de Mattos, observa que a adoção do Estado de Bem-Estar Social por vários países europeus no período pós-Segunda Guerra Mundial fez com que o setor público passasse a ter um peso significativo na promoção do emprego e da qualidade de vida da população. A necessidade de políticas sociais universalistas fez a participação dos empregos públicos crescer mais nos países desenvolvidos do que nos subdesenvolvidos.
Na América Latina, onde a realidade social se assemelha à nacional, o Brasil está em 8º lugar de acordo com dados de 2006 da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). Na Argentina, essa relação é de 16,2%; no Paraguai, 13,4%, e no Panamá, primeiro colocado da lista, 17,8%. O processo de democratização recente também pesa na estrutura, comenta o pesquisador. O levantamento leva em consideração todos os trabalhadores empregados pelo Estado em um sentido mais amplo, incluindo administração direta, indireta e estatais de todo tipo.

Diferenças

Os índices dos emergentes - países que também guardam alguma semelhança com o Brasil -, como Índia (68,1%) e África do Sul (34,3%), ficam muito acima do nível nacional. Há um grave problema de formalização de empregos nesses países, comenta Mattos. Na Índia, por exemplo, o alto percentual está relacionado com o elevado contingente de forças militares e de segurança interna. Além da informalidade, o país carrega um baixo grau de desenvolvimento industrial em contraste com a ocupação agrícola.
O economista do Dieese Tiago Oliveira explica que o estudo questiona o discurso de que o Brasil tem um estado inchado, que surgiu nos anos 90. "A idéia de um país pesado e ineficiente caiu sobre o serviço público e se perpetua até hoje." Porém, observa Oliveira, "ao mesmo tempo em que as pessoas dizem isso, vão aos postos de saúde e esperam por horas, por falta de médicos ou veem os filhos voltarem mais cedo para casa por falta de professores".
O pesquisador do Ipea Fernando Mattos afirma que o resultado da pesquisa mostra a necessidade de ampliação do acesso da população aos serviços públicos e, por consequência, da ampliação do quadro de pessoas que realizam esses serviços.

Qualificação

Apesar de os números desmistificarem o discurso da máquina inchada, nenhum dos especialistas descarta que há desequilíbrio entre áreas administrativas: algumas têm excessiva carência. Há um déficit grande nas áreas de saúde, educação, mas também nas de auditores fiscais e previdenciários ou mesmo na fiscalização das fronteiras", alerta Tiago Oliveira. A qualidade, que não foi alvo da pesquisa do Ipea, é lembrada. "Não se pode esquecer que o bom serviço prestado à população depende da qualificação dos servidores", pondera Mattos.
Servidor da Universidade de Brasília há 32 anos, Cosmo Balbino é contrário à ideia de inchaço do setor público. Para ele, o baixo índice brasileiro diante dos registrados em muitos países não é um indicador ruim. "O Estado sofre de uma carência de médicos e professores. Desde que haja qualificação profissional, não há necessidade de muitos empregados", avalia. "Com a terceirização do serviço público, há perda de qualidade profissional porque não há critérios rígidos para contratação."
Balbino entende que o processo de adequação tecnológica dos cargos públicos, incluindo a UnB, resultou numa menor carência de trabalhadores. "A tecnologia acabou com muitos empregos." Dessa forma, ele sugere uma alternativa para solucionar a falta de vagas de trabalho. "Hoje em dia, há condições de se ter bons salários com poucas pessoas", avalia.


Fonte: Correio Braziliense - 04/04/2009

Negras Verdades

(*) Raimundo Nonato Uchôa Araújo
Criatura do sol, do arco-íris,
Somatório das cores que há na Terra;
Infinita grandeza em mim se encerra.
Sou da África, porém estou no Mundo.

Sou raça negra,
Sou raça forte... (Refrão)
Não temo a vida,
Nem temo a morte!

Muitas guerras travei e as venci;
Não há grilhões que me façam prisioneiro.
Sou pacífico, porém sei ser guerreiro,
Quando roubam a minha liberdade.

(Refrão)

Minha consciência negra é exultante,
O orgulho de ser negro é bem mais forte
E essa condição não é mera sorte,
É conquista que eu faço a cada instante.

(Refrão)

Há quilombos por todo o Universo.
Há Zumbis circulando por aí.
Outros tantos ainda vão surgir
Das senzalas, dos guetos, de Soweto.

(Refrão)

Para cada Apartheid há um Desmond Tutu,
Não adianta Ku Klux Klan, há Luther King.
Nesta raça, nem mesmo a morte extingue
A busca pela vida plenamente.

(Refrão)

Sou tambor, capoeira, caruru,
Afoxé, terecô, sou de Palmares.
Sou senhor das montanhas e dos mares,
Protegido de Iansã, filho de Ogum.

(*) Sociólogo, Mestre em Ciência da Informação, Professor Universitário e poeta amador.
e-mail: ranucho@hotmail.com

sexta-feira, 3 de abril de 2009




Entrevista: DILMA ROUSSEF


Ótima e longa entrevista da Dilma à revista MARIE CLAIRE.

A mulher do presidente

A Dilma Rousseff que todos conhecem lutou contra a ditadura, foi presa e torturada. Virou ministra, enfrentou várias crises no governo e é candidata não oficial à presidência nas próximas eleições. A Dilma que quase ninguém conhece sentia culpa de ir trabalhar e deixar a filha em casa, ri de si própria e se diverte com os programas de sátira a seu respeito. Diz que se sentiu nua quando a imprensa começou a vasculhar sua vida pessoal. Em entrevista exclusiva à Marie Claire, ela fala que preferia os tempos em que os homens cortejavam as mulheres, acha que esse negócio de ficar não funciona bem para nós e diz que é a favor da legalização do aborto
A ministra em seu gabinete. Uma linha de telefone só para falar com o presidente. O gabinete da ministra da casa civil, Dilma Rousseff, 61 anos, é amplo e bem arrumado. Um sofá, duas poltronas, uma mesa de centro com livros ilustrativos do Brasil. Atrás da grande mesa de trabalho, um bufê com alguns porta-retratos: uma foto da filha,Paula, advogada de 31 anos, seu maior xodó, outra com o presidente. Uma imagem de Iemanjá, 'presente do governador ]da Bahia, Jaques Wagner', e outras duas de santas barrocas. Em uma das paredes, duas fotos ampliadas dela com Lula. A mais famosa é a que ele coloca as mãos sujas de petróleo nas costas da ministra, em uma espécie de 'batismo' de óleo. Um telefone que é usado somente para falar com ele. São sinais que mostram sua relação afinada com o presidente. Dilma é hoje a mulher mais forte do governo. À frente do PAC (Plano de Aceleração ao Crescimento), é a candidata natural do PT à presidência da República.
Entramos no gabinete esperando encontrar a Dilma que todo mundo conhece - ou acha que conhece. Dura, séria, um tantinho mal-humorada. Encontramos uma mulher sorridente, que nos cumprimentou com dois beijinhos. Vestida num terninho azul-claro, regata branca, colar de pérolas, relógio, fitinha do Senhor do Bonfim amarrada no pulso (presente de Flora Gil, objeto de um pedido do qual nem lembra mais), Dilma nos deixou à vontade logo nos cinco primeiros minutos de conversa. Sem brincos e sentada em uma mesa redonda de reunião, com vista para a Esplanada dos Ministérios, Dilma puxou uma edição de Marie Claire trazida por sua assessora e apontou uma foto da atriz Larissa Maciel, que fez o papel da cantora Maysa na minissérie global. 'Como essa menina está linda nesta foto. Mais bonita do que na minissérie', disse. 'Sabe por quê? Porque aqui as feições estão suavizadas.' Assim como as dela mesma, depois da plástica feita no início do ano. Ela age como se ainda estivesse se acostumando ao novo visual - enquanto fala, ajeita os cabelos, puxa para frente, joga um pouco para o lado.
Economista de formação, mas política de carreira, Dilma fala alto, bastante e rápido. Bate com as mãos cerradas na mesa quando discursa sobre as medidas econômicas do governo. Usa o mesmo tom grave ao se referir à ditadura militar. Seus subordinados costumam ser tratados com a mesma severidade. Mas na hora da conversa, é bem-humorada. Adora falar sobre a filha. Sagitariana e separada de dois casamentos, a mineira de Belo Horizonte passou boa parte da vida adulta em Porto Alegre. Mistura os sotaques e as expressões das duas cidades. Ora usa 'tu', ora 'ocê'. Ri alto quando o assunto são as caricaturas que a imprensa fez dela depois da plástica, não se esquiva de perguntas sobre sua vida íntima e se empolga na hora de falar das influências intelectuais que fizeram parte da sua geração.
A ministra da Casa Civil começou a fazer história quando, aos 15 anos, entrou para o movimento estudantil para lutar contra a ditadura militar. Aos 19, vivia na clandestinidade. Foi uma das líderes de duas importantes organizações da esquerda radical, o Colina e a VAR-Palmares. Foi nessa época que se casou, pela primeira vez, com o jornalista Cláudio Galeno. Fez treinamentos de guerrilha, aprendeu a montar e desmontar fuzis, mas diz que nunca trocou tiros com soldados do exército ou policiais militares. Ela afirma que fazia parte da inteligência das organizações. Presa em 1970, ficou três anos na cadeia, onde foi barbaramente torturada. Ao falar sobre essa época, mostra sentimentos dúbios. Às vezes discursa com indignação. Às vezes fala baixo, pausado. Mas em nenhum momento sugere arrependimento. Deixa claro que tem orgulho do que viveu.Em liberdade, casou-se com o advogado gaúcho Carlos Araújo, também ligado à militância de esquerda. Os dois se mudaram para Porto Alegre, onde fizeram carreira política pelo PDT.
Dilma foi secretária na área de energia do governo gaúcho. Os resultados do trabalho feito no Sul a conduziram ao primeiro posto no governo Lula, no Ministério de Minas e Energia, em 2003.
O segundo casamento terminou em 2000. Dilma perdeu o pai, o búlgaro Pedro Rousseff, em consequência de diabetes, quando tinha 15 anos. Em 1977, aos 30, perdeu a irmã mais nova, Zana, de um tipo raro de infecção. Ela conta esses fatos sem a voz embargada ou em tom de vítima. Dilma Rousseff parece não ter nascido para esse papel. Sempre que lembra algum momento triste, a imagem da mulher forte permanece. Nada de olhar para baixo, voz trêmula ou esquiva. Mas fica claro que prefere conversar sobre assuntos alegres.
Empolga-se e dá um sorriso gostoso quando diz que se prepara para ser avó. E com o mesmo sorriso afirma que não se sente solitária pelo fato de não ter um namorado ou marido.
Na política, ganhou notoriedade depois de assumir a chefia da Casa Civil, em 2005, no lugar de José Dirceu. Se, por um lado, conseguiu manter uma imagem de respeito em um governo desgastado pela crise do mensalão, por outro protagonizou algumas crises políticas. Foi acusada de favorecer um grupo de empresários na venda da Varig Log (a empresa de transportes de carga da antiga Varig) e de ter mandado produzir um dossiê clandestino com os gastos do governo Fernando Henrique Cardoso. Só a última acusação acabou em inquérito policial e o Supremo Tribunal Federal retirou a ministra da investigação (a decisão ainda não é definitiva). Aqui, ela fala sobre maternidade, amor, tortura, cotidiano e um pouquinho de política.
Marie Claire - Com seu passado, como é para a senhora se tornar uma figura pública, quase uma celebridade?
Dilma Rousseff - No início senti mais. Levei um tempo para entender como me sentia. É como se eu fosse uma tartaruga e tivessem extraído minha casca. Isso é a nudez. É uma desproteção diante do mundo, só que momentânea. E acho que não tem maiores consequências, sabe?
MC - Até as suas manicures foram entrevistadas...
DR - Podem invadir meu cabeleireiro. Não tô nem aí. Eu vi o repórter de
campana. Fiquei até com pena, coitado, porque eram oito da manhã - horário que consigo ir fazer escova. Estava lavando a cabeça quando ele me perguntou se eu poderia dar uma entrevista. Alguém quer dar entrevista às oito da manhã lavando a cabeça? Ele ficou me esperando do lado de fora. Saí por uma porta que não era a que ele estava. Saí devagar, para ele me ver. Mas não viu, estava distraído... Deve ter ficado com raiva, mas, olha, andei bem devagarinho, viu [risos]?
MC - E as máscaras de carnaval que fizeram com seu rosto depois da plástica?
DR - Acho uma glória. Rio demais do Pânico [programa humorístico de TV]. Me achei genial com o nariz assim [arrebita a ponta do nariz com o indicador e ri]. Gente? Tem de rir, né? Outro dia me deram um presente no Rio Grande do Sul, uma máscara com uma peruca escura. Era eu de peruca e bigode. Um horror. Falei pro cara: 'Escuta, não tenho bigode'. Mas as caricaturas são ótimas. Tem algumas manifestações - não nas agressões, claro, porque não sou masoquista - que até me deixam constrangida porque são afetivas. Quando pedem para tirar foto comigo, fico com vergonha. É um elogio afetivo. Brasileiro tem muito disso, é pior que japonês, adora uma foto. Inclina a cabeça, encosta, aperta a mão. Precisa ter um coração de cimento para não se enternecer. Escuto coisas do arco da velha.
MC - De que tipo?
DR - O povo é muito engraçado. É perspicaz, irônico e muito gentil. Falam muito pra mim [depois da plástica]: 'Não liga não, você estava muito velha' [risos]! Não é fantástico?
MC - Gostou do resultado?
DR - Estou me sentindo ótima. Tenho senso crítico, né? Estou mais parecida comigo aos 40 do que aos 60. Não cheguei aos 30, que era meu sonho de consumo [risos].
MC - Melhorou a autoestima?
DR - Autoestima é algo que se recebe de casa. Sempre tive uma relação muito estreita com meu pai. Ele gostava muito de mim e eu achava isso ótimo. Com o passar do tempo, descobri que ele gostava muito da minha mãe também. Mas isso sequer havia passado pela minha cabeça [risos]. O fato de os pais gostarem da gente é o que dá firmeza para encarar a vida.
MC - Sua relação com a Paula, sua filha, sempre foi próxima?
DR - Ah... teve fases. Primeiro foi o ciclo de absoluta ligação, quase
umbilical: a identificação total, o amor profundo. Uma relação muito próxima comigo e distante com o pai. Quando ela tinha 1 ano e ele a beijava com bigode, ela dava um escândalo e dizia: 'Este homem me beijou' [risos]. Mas quando entrou na puberdade, ela se aproximou mais dele e se afastou de mim. Passei a ser procurada só quando tinha um problema, quando ela terminava com o namorado, ficava com alguém. Essa história de ficar confundiu a cabeça dela e a das amigas... Quando percebi o que estava acontecendo, pensei: 'Estão danadas'. Ou melhor, nós, mulheres, estamos danadas.
MC - Por quê?
DR - Porque esse negócio de ficar não funciona bem para as mulheres. Não adianta, não é igual. A gente precisa de uma certa sedução, de corte, do processo de conquista. Não pode ser aquele sincericídio horroroso que há no ficar. No meu tempo, não era um convívio tão sem charme. Tinha que ter uma relação emocional com a outra pessoa. A gente construía algo até chegar ao ficar. Não era só em uma balada.
MC - A senhora acha que sua geração é mais romântica que a da sua filha?
DR - Acho que não. Todas as meninas hoje querem casar. Dão mais valor à família. Vejo isso na minha filha. Ela se importa em ter um relacionamento estável com o marido. E acho que a família toda é muito importante para ela: as avós, as tias, os primos. A família estendida é algo que essa nova geração valoriza também. E a gente também queria casar nos anos 60 e 70, só que não sabia.
MC - Não sabia ou não assumia?
DR - Não sabia mesmo. A afirmação de independência era forte pra gente. Fomos a primeira geração que viveu a experiência de sair de casa, trabalhar. Vivíamos em meio a colchões e almofadas. Ah, o mundo dos colchões e das almofadas... E não ousávamos também ter filhos. Fui mãe aos 28 anos, que era tarde para minha época. A gente dizia que toda mulher queria casar e ser feliz para sempre em tom de ironia, mas no fundo é o que a gente quer mesmo. Essa é a eterna busca.
MC - Seus amigos costumam dizer que a senhora se vê muito na sua filha. Quais valores se preocupou em passar a ela?
DR - Acho que a Paula tem um grande senso de justiça. E espero que ela tenha herdado isso de mim e do pai. Ela sempre será levada a defender os injustiçados. E também de dignidade, capacidade de viver pelos próprios meios. Outra característica que transmitimos a ela foi senso de humor, a capacidade de rir de si mesma. Pelo menos nos esforçamos para que ela tivesse isso [risos]. Se a gente se leva a sério demais, fica cheia de 'nós pelas costas', uma expressão gaúcha de que gosto muito.
MC - Hoje, a senhora se dá bem com o seu ex-marido?
DR - Muito. Esse processo todo de distanciamento, depois da separação, levou, no máximo, seis meses. Faz parte. É o luto. Hoje em dia a gente passa os natais juntos. Preservamos as datas familiares. Natal é uma festa solene.
MC -A senhora trabalhava no governo gaúcho quando a Paula era pequena. Sentia culpa de sair e deixá-la em casa?
DR -Ah, sem dúvida. Quem fala que não sente culpa está faltando com a
verdade. A gente tem necessidade de ficar perto da criança. Quando ela tinha febre, eu chispava para casa. Não conseguia mais trabalhar. Parava de focar. E a minha filha tinha asma, que é um desespero só. Uma noite, coitadinha, ela estava mal e entendeu a minha preocupação tão bem que falou: 'Mamãe, sua noite vai ser ruim, hein?'.
MC - Uma das bandeiras da Marie Claire é defender a legalização do aborto. Fizemos uma pesquisa com leitoras e 60% delas se posicionaram
favoravelmente, mesmo o aborto não sendo uma escolha fácil. O que a senhora pensa sobre isso?
DR - Abortar não é fácil pra mulher alguma. Duvido que alguém se sinta
confortável em fazer um aborto. Agora, isso não pode ser justificativa para que não haja a legalização. O aborto é uma questão de saúde pública. Há uma quantidade enorme de mulheres brasileiras que morre porque tenta abortar em condições precárias. Se a gente tratar o assunto de forma séria e respeitosa, evitará toda sorte de preconceitos. Essa é uma questão grave que causa muitos mal-entendidos.
MC - Hoje, o que é preciso para legalizar o aborto no Brasil?
DR - Existem várias divisões no país por causa dessa confusão, entre o que é foro íntimo e o que é política pública. O presidente é um homem religioso e, mesmo assim, se recusa a tratar o aborto como uma questão que não seja de saúde pública. Como saúde pública, achamos que tem de ser praticado em condições de legalidade.
MC - A senhora acredita em Deus?
DR - Fui batizada na Igreja católica, mas não pratico. Mas, olha, balançou o avião, a gente faz uma rezinha [risos]. Tenho uma relação muito forte com Nossa Senhora, decorrente da minha formação em um colégio de freiras.
MC - O que a levou a ser a mulher mais forte do governo, praticamente o braço direito do presidente Lula? A que atribui esse status?
DR - À minha história. O governo do presidente é como um rio com vários
afluentes que convergiram para fazer esse projeto [de governo]. Sou um dos afluentes, que vem da luta libertária contra a ditadura. Mas há vários
outros importantes: o pessoal do movimento sindical, do PT, do PMDB. Jogam muita pedra no PMDB, mas se esquecem do papel que ele desempenhou. Lembro-me do [Pedro] Simon [senador do partido] lutando pelas Diretas, brigando pela democratização. Então, não vamos esquecer quem somos, quem são essas diferentes trajetórias que desaguaram aqui.
MC - A senhora passou por várias crises políticas graves durante seu governo (Dossiê FHC, Varig Log). O que faz para se manter forte internamente? Terapia, tem alguma crença? Chora escondido?
DR - Não faço nada, não. Cargos públicos no Brasil são assim. Basta olhar a pressão que exerceram sobre o presidente. A gente aguenta, uai. É preciso se lembrar de ter um distanciamento e entender que isso faz parte do jogo político. Uma coisa que dá força é a sensação imensa de injustiça. Outra é que temos grande convicção no projeto que estamos fazendo. Em terceiro lugar é importante ter apoio. Tenho apoio do presidente, dos outros ministros. Também é fundamental ter foco. O mundo pode estar caindo que tenho de trabalhar. Tenho de fazer as obras do PAC andar, implementar os projetos que o presidente definiu. Mas também adquiri um lombo meio grosso e certas coisas não me atingem mais como antes. E isso é muita espuma, né? Tem um lado disso que é espuma, que vai embora.
MC - Quando a senhora se engajou na militância política, no movimento
estudantil?
DR - Saí do colégio Nossa Senhora de Sion, em Belo Horizonte, de meninas de elite, aos 15 anos. As freiras estavam numa fase de transição. Uma das transformações era dar mais importância às questões sociais, à miséria. Senti essa influência. De lá mudei para o colégio Aplicação, porque se continuasse no Sion, teria que fazer 'normal', seria professora, e não queria isso. Meu primeiro dia de aula foi em 10 de março de 1964, um mês antes do golpe. O colégio era uma efervescência só. Era moderno, tinha representantes de vários grupos da esquerda. Com o golpe, alguns segmentos da classe média de que eu fazia parte se radicalizaram. Como alguém de 16
anos acha que pode existir democracia se um mês depois do início das aulas há um golpe de estado? Começaram as manifestações estudantis, teatrais, os festivais etc. Em 1968, quem fazia parte da militância de esquerda, quem lutava contra a ditadura, foi para a clandestinidade. Eu fui uma dessas pessoas.
MC - Que influências intelectuais a senhora recebeu naquele momento?
DR - Foi nesse período que ganhei minha sensibilidade social, a noção de que era impossível o País viver com tanta miséria. A percepção crescente dos problemas sociais, políticos e econômicos, do arroxo salarial, do
não-reajuste do salário mínimo, direito de greve etc. Ganhei consciência da participação, da democracia. Ao mesmo tempo que estava despertando para a política, despertava para a cultura, literatura. Minha geração foi influenciada pela Simone [de Beauvoir], pelo [Jean Paul] Sartre, por todo o povo existencialista, pela nouvelle vague e muito profundamente pela revolução cubana.
MC - Como sua família via isso?
DR - Eu queria ser profissional, ganhar a vida, ser independente. Tive de
convencer minha mãe, meu pai já tinha morrido. Ele morreu quando eu tinha 15 anos. Talvez se ele estivesse vivo, o nível de proteção que ele construiria em torno de mim fosse tão forte que eu tivesse de levar algum tempo para ser o que eu fui. Mas eu seria, inexoravelmente. Sartre, que também perdeu o pai, tem uma frase ótima sobre isso: 'Morreu meu superego'. Em que pese eu
ter gostado muito e ter uma relação fortíssima com meu pai, de uma certa forma, é no momento da morte dele que - não é que eu deixo de ter um superego - deixo de ter um super-superego [risos].
MC - E o que mudou daqueles tempos para cá? Que ideais a senhora perdeu?
DR - Gostei muito de ser jovem naquele período. Mas em 1968, com o fechamento e a clandestinidade, a gente passou a acreditar que não era possível construir a democracia no Brasil. Mas, alguns anos depois, essa geração que foi para a cadeia e o exílio ganhou uma noção perfeita do valor da democracia e o que significa não tê-la. Não é só porque o cara deixa de cantar música, porque a peça não vai ser encenada, pois o teatro foi invadido, ou porque a imprensa é censurada. É porque se mata, se tortura, se extermina. Mudamos e entendemos que a democracia era fundamental.
MC - Em uma entrevista que a senhora deu ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho, conta que durante 22 dias sofreu sessões de tortura, entrou com a palmatória, foi para o pau de arara. Como foi isso?
DR - Tomei choques em várias partes do corpo, inclusive nos bicos dos seios. Tive até hemorragia. Depois de apanhar, era jogada nua em um banheiro, suja de urina e fezes. Tremia de frio até que a sessão de tortura começasse novamente.
MC - Mesmo sofrendo tudo isso, não deu as informações que os militares queriam sobre seus companheiros. A senhora diz que foi aí que aprendeu a conhecer seus limites. Que processo foi esse?
DR - Achava que podia ser heroína. Havia um tabu dentro da esquerda que não discutia o que é a dor, a tortura [a voz se torna mais grave]. Quando fomos para a cadeia, achávamos que não falaríamos nada diante da tortura. Errado. Dizer aos torturadores que não vamos falar o que sabemos é coisa de gente maluca. O único jeito de resistir é dizer que não tem as informações que eles estão perguntando: 'Não sei, não fiz, não estava lá'. Não há outra maneira. Se eles acharem que ao baterem mais conseguirão o que querem, a pessoa está roubada. Na tortura, as pessoas acabam falando porque têm limites para aguentar tudo aquilo. E nós tivemos de ampliar os limites para suportar as porradas e os choques sem dar informações. Pensava: 'Vou aguentar mais um tempo e depois seja o que Deus quiser'. É uma negociação de você consigo mesma. Se alguém tentar, em algum momento, dar de bacana, está lascado. Eles batem ainda mais. É um jogo de resistência psíquica. Mas, de certa forma, todo mundo conseguiu enganá-los. Os próprios militares falavam
que preso velho era o que de pior havia. Um bicho 'cestroso', cheio de
manha. Um preso novo não sabe o tamanho da dor que pode enfrentar. Em quatro meses, um preso já se torna relativamente velho. Fiquei três anos na cadeia. Só faltava ter auréola, de tão boazinha [risos].
MC - Foi por isso que ficou tão irritada quando o senador José Agripino Maia, do DEM, disse que a senhora teria facilidade para mentir ali, durante uma sessão no senado, porque mentiu sob tortura?
DR - Naquela ocasião, respondi a ele com veemência, um pouco de dor e muita emoção. É de uma ignorância supina alguém supor que mentir não seja difícil. A mentira é algo extremamente difícil de ser feito em uma cadeia. Diante da tortura, encaramos nós mesmos, nossas fraquezas, medos, pavores. Olhamos para o nosso pior lado, que não passa do lado humano mais frágil, mais desprotegido. Quem passa pela tortura e não tem complacência nem misericórdia com seus companheiros é maluco ou culpado. Porque quem não entende que uma pessoa falou sob tortura é louco. Mas aprendi que só conseguimos enxergar o outro se nos enxergarmos. O que é inadmissível é o terror de Estado, capaz de fazer isso com alguém.
MC - Que balanço a senhora faz hoje desse período?
DR - Fizemos uma análise errada. Achamos que a ditadura estava em crise, mas, na verdade, o milagre econômico estava apenas começando. A gente não percebeu o quanto eles ainda iam endurecer. Tivemos muitas derrotas. Apanhamos muito, não só fisicamente. Fomos ingênuos em achar que conseguiríamos um Brasil melhor, com mais igualdade e educação de forma fácil. A forma de fazer é árdua, difícil, leva tempo e exige mediações. Mas, no final, a gente ganhou. Tenho um imenso orgulho de fazer parte de um governo que mostrou que é possível crescer e distribuir renda ao mesmo tempo.
MC -Muitos líderes, políticos e empresários acabam se envolvendo tanto com o trabalho que deixam a questão afetiva de lado. A senhora está solteira. Como é lidar com a solidão?
DR - Mas não sou sozinha, não. Sou muito bem acompanhada. Me sinto muito bem comigo mesma. Pra gente se sentir só, precisa estar muito carente. Não se fica sozinha aos 60. Ficamos sozinhas aos 30.





Por Carla Gullo e Maria Laura Neves