sábado, 28 de fevereiro de 2009

RESOLUÇÕES DA EXECUTIVA NACIONAL DA CUT


Resoluções da Executiva Nacional

"Enfrentar a crise ampliando a luta de classe e organizando a transição para um novo modelo de desenvolvimento"

Reunida nos dias 17 e 18 de fevereiro de 2009, em São Paulo, a Direção Executiva Nacional da CUT, aprofundou a reflexão sobre a crise mundial, deliberando que no próximo período sua principal tarefa é "Enfrentar a crise ampliando a luta de classe e organizando atransição para um novo modelo de desenvolvimento". O Portal do Mundo do Trabalho reproduz, abaixo, a íntegra do documento.

"Enfrentar a crise ampliando a luta de classe e organizando atransição para um novo modelo de desenvolvimento"

Essa crise expressa, em primeiro lugar, a crise do capitalismo eda sua atual expressão neoliberal, que é calcado, entre outros, naliberalização financeira e comercial. Os responsáveis por essa crise internacional são aqueles que implementaram em vários países do mundo,inclusive no Brasil, com FHC/PSDB/DEM, as políticas neoliberais do Consenso de Washington. Esse modelo de Estado mínimo com pouca ounenhuma regulamentação, privatizações, absolutos privilégios aocapital especulativo e financeiro, ataques aos direitos trabalhistas e desregulamentação das relações de trabalho, da lógica de que o mercado resolveria tudo, desmoronou. Está em disputa um novo modelo de desenvolvimento para o mundo e para o Brasil.

O impacto dessa crise internacional no Brasil atinge os setoreseconômicos de forma diferenciada e, mesmo nesses setores, atinge diferenciadamente as empresas. A CUT rejeita qualquer acordo amploque, utilizando-se do pretexto da crise, busque retirar direitos paraampliar os lucros. É isto que tem acontecido com os empresários queaproveitando-se desse momento, oportunisticamente, efetuam ajustes emsuas empresas. Outros, fiéis ao espírito de manada e à ganância,apressam-se em discutir propostas que implicam em redução de salários,ou de suspensão do contrato de trabalho como a primeira e única medidapara enfrentar a crise.

Por isso, reafirmamos que a melhor resposta para a complexidadedo momento é a defesa do desenvolvimento com emprego, geração de renda e a defesa dos direitos da classe trabalhadora, com a participação dasociedade no controle das diversas esferas econômicas e sociais. A inclusão social, a participação popular e a valorização do trabalhosão os pilares para que o Brasil se consolide como um país de todos ede todas.

A crise e o Governo LULA

Estamos em um contexto mais favorável para redimensionar aagenda da crise, no caso brasileiro. Temos um governo que afirma quenão vai aceitar uma agenda conservadora de enfrentamento da crise. De outro lado, a direita brasileira não encontrou espaço político para questionar as conquistas recentes da classe trabalhadora, a exemplo da política de valorização do salário mínimo.

Políticas econômicas que ampliaram o investimento das empresasestatais, o crédito, o orçamento das políticas públicas e a políticade salário mínimo, bem como os investimentos em infraestrutura,através do PAC demonstram que o Estado brasileiro possui melhores condições de enfrentar a crise atual. São medidas importantes pararetomar o crescimento econômico e a geração de empregos, porém, nãosão suficientes. A luta pelas contrapartidas sociais continua.

Esta crise já vem sendo tratada, principalmente pela mídia,dentro do debate político nacional que antecipa a disputa de 2010.Alguns exemplos demonstram que a CUT deve exercer influência nessa disputa de projetos, no sentido da formulação de políticas públicas dentro de um modelo de desenvolvimento defendido por nós. A políticade valorização do salário mínimo e a abrangência tomada pela propostade contrapartidas de manutenção de emprego são exemplos de alguns dos casos mais emblemáticos.

A CUT e a crise

A CUT, desde o início dessa crise, vem se colocando de forma muito contundente contra as medidas que só aprofundam a situação.Nossa atuação alia mobilização e negociação. De um lado, pressionamos o Governo Federal e os governos estaduais por ampliação de crédito,redução de juros e dos spreads bancários e desonerações tributárias momentâneas e específicas para os setores mais atingidos pela crise,condicionadas a contrapartidas de emprego e manutenção da renda dostrabalhadores. A CUT reitera que o fim do superávit primário, da leide responsabilidade fiscal e a diminuição dos juros são medidas essenciais para enfrentar a crise.

Também reiteramos a responsabilidade do poder público nas 3esferas de poder - federal, estadual e municipal - em propor ações decombate à crise. É necessário manter os acordos firmados com o sindicalismo do setor público, garantir os recursos reservados ao s investimentos em infraestrutura e em políticas sociais. Também é necessário afirmar que reivindicamos o fortalecimento do serviço público com a valorização dos servidores e servidoras, a liberdade deorganização sindical e a negociação coletiva.

A CUT assumiu um papel fundamental no combate e denúncia deempresas que se aproveitam do momento para fazer ajustes de custos - com demissões, redução de salários, diminuição de direitos. Nesse sentido, no dia 11 de fevereiro, a CUT realizou grandes atos público sem todo o país para afirmar que os trabalhadores não vão pagar pelacrise. A principal denúncia foi feita contra a Vale do Rio Doce.Apesar de ter lucrado R$ 23 bilhões em 2008, anunciou a demissão demais de 1.000 trabalhadores, férias coletivas para mais de 5.000 eainda propôs a redução salarial de 33.000 trabalhadores. Ao mesmo tempo, a Vale adquiriu empréstimo com o BNDES, sob argumento dedificuldades frente à crise. É o exemplo mais claro de como os empresários tem conseguido lucrar com a crise.

O enfrentamento da crise

O impacto da crise sobre a vida das pessoas pode não ser percebido de imediato em toda sua extensão. Mas pode serpotencializado para elevar o grau de consciência das massas sobre aimportância do Estado de maneira geral, e das políticas públicas emparticular. E devemos ir além, questionando a ordem capitalista, propondo um novo padrão de produção e de consumo, de desenvolvimento baseado na sustentabilidade ambiental e social.

Temos espaço para influenciar sobre um determinado eixo de enfrentamento da crise que não se limite à retomada do crescimento econômico. É necessário que sejam construídas iniciativas que resultem em criação de um modelo de desenvolvimento alternativo ao hegemônico.Cobrar uma agenda de superação da crise, mas também do atual modelo, éo desafio central da CUT na disputa atual, que influenciará a disputade 2010.

Também é de fundamental importância a política latino-americananesse esforço de construção de outro modelo de desenvolvimento. Precisamos ressaltar o internacionalismo sindical com as experiênciasde transição pós-neoliberal que ocorrem no sub-continente. Mais integração, mais solidariedade e mais organização são esforços queajudam a organizar nossa agenda. A CSA - Confederação Sindical dasAméricas - e sua plataforma laboral, são instrumentos que podemassumir influência real sobre os rumos a serem tomados pelos Estadosnacionais na região.

A CUT, e o conjunto de suas entidades filiadas, deve eleger umaplataforma que atenda pelo menos três frentes estratégicas.

Em primeiro lugar, essa agenda precisa servir para pressionar o Governo federal, estaduais e municipais a alterar o padrão deintervenção do Estado brasileiro e, ao mesmo tempo, o modelo de desenvolvimento ora em curso;

A segunda necessidade estratégica é a capacidade de convocação daqueles que tem compromisso popular, as forças de esquerda e partidospolíticos desse campo;

E o terceiro imperativo, dessa agenda, é a sua inserção na basesocial organizada pela CUT. Isso quer dizer que temos que concentraresforços do conjunto da CUT, em seu sentido mais amplo (direções ebase social).

Elemento que pode compor essa agenda, atendendo às necessidadesestratégicas da CUT (influenciar na disputa por outro modelo,construir a unidade do campo popular e unificar a base social da CUT) é a disputa dos espaços públicos para democratizar a definição darenda pública. Trata-se de uma estratégia de ação sindical maisduradoura, para dentro do governo e na sociedade. Ter ações concretaspara imprimir regulação pública aos empréstimos de recursos públicosàs empresas privadas - condicionando-os à manutenção de empregos - e,então, utilizar essa brecha para cobrar avanços em termos de controlesocial e participação democrática na destinação da renda pública.Democratizar o Orçamento Geral da União, a gestão dos bancos públicos,o Conselho Monetário Nacional, dentre outros espaços de definição dosinvestimentos; essa é uma agenda sindical estratégica e combativa.

Temos pela frente um calendário de lutas que deve potencializar nossa agenda estratégica:

- As Conferências Nacionais de Educação e de Comunicação serão arenas importantíssimas de disputa de projetos em nosso país. Elas possibilitam uma ação da CUT unificada com os movimentos sociais eforças políticas organizadas em nosso campo político. Possibilitam,ainda, o envolvimento do conjunto das direções e base social da nossaCentral.

- O Dia Internacional de Luta das Mulheres, 8 de março, serápalco de luta contra a exploração do capital, a violência sexista e o machismo. A CUT está centralmente envolvida na organização do ato queserá realizado na Fronteira Brasil/Uruguai, na cidade de Santana do Livramento (RS). Será uma demonstração de combatividade e de construção da unidade sindical e popular latino-americana. Reafirmaremos a urgência de políticas públicas que responsabilizem o Estado pelo trabalho doméstico (creches, refeitórios e lavanderiaspúblicas), e denunciaremos que as demissões afetam primeiramente aparte mais vulnerável do mercado de trabalho-as mulheres.

- Realizaremos, no próximo período, no âmbito da Jornada peloDesenvolvimento, um Ciclo de Debates sobre temas que correspondem àsquestões essenciais para a conformação de um projeto dedesenvolvimento para o Brasil, sob a ótica da classe trabalhadora, aexemplo: política internacional, política agrícola e agrária, sistemafinanceiro e tributário, política industrial, democracia eparticipação popular, comunicação, educação, saúde, energia e meioambiente, política urbana, mercado de trabalho e regulação, culminandona Plataforma da Classe Trabalhadora para 2010.

- Realizaremos uma grande mobilização no dia 27 de março, com aproposta que seja um Dia Continental de Luta contra o Capitalismo e aGuerra, convocado pela Confederação Sindical das Américas - CSA.

- Investiremos no processo preparatório e na realização da IConferência Mundial sobre Sistemas Universais de Proteção Social (30de novembro a 4 de dezembro, em Brasília), como parte da lutaestratégica por um novo modelo de Estado que tenha como centro auniversalização de direitos. Nessa agenda, o dia 7 de abril, data emque se comemora o Dia Mundial da Saúde, será realizado uma amplamobilização em nível mundial em defesa desta pauta.

- Além de potencializar as campanhas salariais em curso, nestedifícil período, através da unificação de ações, a CUT e o Dieese, emconjunto com as demais Centrais Sindicais, realizará entre os meses demarço e abril (calendário seguirá proximamente) um Jornada Nacional deDebates sobre a Crise e as Campanhas Salariais;

- Reforçaremos as campanhas pela implementação do Piso Nacionaldo Magistério, pelas ratificações das Convenções 87, 151 e 158 da OIT,pela tramitação do PL de contribuição negocial, pela Redução daJornada de Trabalho sem Redução de Salário, da diminuição dos juros, ofim do superávit primário e da Lei de Responsabilidade Fiscal,.

- O 10º Concut, que será realizado entre os dias 10 e 15 deagosto de 2009 (correspondência seguirá proximamente) deverá ser ummomento de intensos debates, de grande participação da militânciacutista, de mobilização e de potencialização de nossa luta.Queremos que a superação da crise resulte na construção de ummodelo alternativo, democrático e popular com horizontes transitóriospara a sociedade socialista. A ação da CUT, nesse período, deve seorientar para que a disputa em torno do projeto que desejamos seja vitorioso, inclusive em 2010, e para o fortalecimento da unidade docampo democrático e popular, objetivos indissociáveis e que tem na nossa Central uma ferramenta imprescindível.

Somos Fortes! Somos CUT.

São Paulo, 19 de fevereiro de 2009.
EXECUTIVA NACIONAL DA CUT
Quintino Severo
Secretário Geral Nacional

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

CRENÇA NA UTOPIA: SLAVOJ ZIZEK


CRENÇA NA UTOPIA - MISSÃO: IMPOSSÍVEL

"crença na utopia é ainda a melhor maneira de questionar a exclusão social" Slavoj Zizek

Um dos grafites mais conhecidos dos muros de Paris em 1968 era: “As estruturas não andam pelas ruas!”. Isto é, não se podem explicar as grandes manifestações de estudantes e trabalhadores do Maio de 68 como determinadas pelas mudanças estruturais na sociedade.Mas, segundo [o psicanalista] Jacques Lacan, foi exatamente isso o que aconteceu em 1968: as estruturas saíram às ruas. Os eventos explosivos visíveis foram, em última instância, o resultado de um desequilíbrio estrutural -a passagem de uma forma de dominação para outra; nos termos de Lacan, do discurso do mestre para o discurso da universidade.Os protestos anticapitalistas dos anos 60 suplementaram a crítica padrão da exploração socioeconômica pelos temas da crítica social: a alienação da vida cotidiana, a “mercadorização” do consumo, a inautenticidade de uma sociedade de massa em que “usamos máscaras” e sofremos opressão sexual e outras etc.Prazer extremoMas o novo espírito do capitalismo recuperou triunfalmente a retórica anti-hierárquica de 1968, apresentando-se como bem-sucedida revolta libertária contra as organizações sociais opressivas do capitalismo corporativo e do socialismo “realmente existente”.O que sobreviveu da libertação sexual dos anos 1960 foi o hedonismo tolerante, facilmente incorporado a nossa ideologia hegemônica: hoje o prazer sexual não apenas é permitido, é ordenado - os indivíduos se sentem culpados quando não podem desfrutá-lo.A tendência às formas radicais de prazer (por meio de experiências sexuais e drogas ou outros meios de indução ao transe) surge em um momento político preciso: quando o “espírito de 68″ esgota seus potenciais políticos. Nesse ponto crítico (meados dos anos 70), a única opção restante foi um direto e brutal empurrão para o real, que assumiu três formas principais: a busca por formas extremas de prazer sexual, a opção pelo real de uma experiência interior (misticismo oriental) e, finalmente, o terrorismo político de esquerda (Fração do Exército Vermelho na Alemanha, Brigadas Vermelhas na Itália etc.).O que todas essas opções compartilham é um recuo do engajamento sociopolítico concreto para um contato direto com o real. Lembremos aqui o desafio de Lacan aos estudantes que protestavam: “Como revolucionários, vocês são histéricos que exigem um novo mestre. Vocês vão ganhar um”. E o ganhamos, sob o disfarce do mestre “permissivo” pós-moderno cuja dominação é mais forte por ser menos visível.Sem dúvida, muitas mudanças positivas acompanharam essa passagem -basta citar as novas liberdades das mulheres e seu acesso a cargos de poder.Entretanto essa passagem para um outro “espírito do capitalismo” foi realmente tudo o que aconteceu nos eventos do Maio de 68, de modo que todo o entusiasmo ébrio de liberdade foi apenas um meio de substituir uma forma de dominação por outra?Muitos sinais indicam que as coisas não são tão simples. Se examinarmos nossa situação com os olhos de 1968, devemos lembrar o verdadeiro legado desse ano: seu núcleo foi uma rejeição ao sistema liberal-capitalista.É fácil zombar da idéia do “fim da história” de Francis Fukuyama, mas hoje a maioria é fukuyamista: o capitalismo liberal-democrático é aceito como a fórmula finalmente encontrada da melhor sociedade possível, e tudo o que se pode fazer é torná-la mais justa, tolerante etc.Ecologia e apartheidHoje a única verdadeira questão é: nós endossamos essa naturalização do capitalismo ou o capitalismo global de hoje contém antagonismos fortes o suficiente para impedir sua infinita reprodução?Há (pelo menos) quatro desses antagonismos: a sombria ameaça da catástrofe ecológica, a inadequação da propriedade privada para a chamada “propriedade intelectual”, as implicações socioéticas dos novos avanços tecnocientíficos (especialmente em biogenética) e as novas formas de apartheid, os novos muros e favelas. Os primeiros três antagonismos se referem aos domínios do que Michael Hardt e Toni Negri chamam de “comuns”.Há os “comuns de natureza externa” ameaçados pela poluição e a exploração (do petróleo a florestas e o próprio habitat natural), os “comuns de natureza interna” (o legado biogenético da humanidade) e os “comuns de cultura”, as formas imediatamente socializadas de capital “cognitivo”, basicamente a língua, nosso meio de educação e comunicação.A referência a “comuns” justifica a ressurreição da idéia de comunismo: nos permite ver o envolvimento progressivo dos comuns como um processo de proletarização daqueles que são assim excluídos de sua própria substância.No entanto é apenas o antagonismo entre os “incluídos” e os “excluídos” que realmente justifica o termo comunismo. Em diferentes formas de favelas ao redor do mundo, presenciamos o rápido crescimento da população sem o controle do Estado, vivendo em condições meio fora-da-lei, em terrível carência de formas mínimas de auto-organização.Se a principal tarefa da política emancipatória do século 19 foi romper o monopólio dos liberais burgueses por meio da politização da classe trabalhadora, e se a tarefa do século 20 foi despertar politicamente a imensa população rural da Ásia e da África, a principal tarefa do século 21 é politizar -organizar e disciplinar - as “massas desestruturadas” dos que vivem nas favelas.Se ignorarmos esse problema dos excluídos, todos os outros antagonismos perdem seu viés subversivo. A ecologia se transforma em um problema de desenvolvimento sustentável, a propriedade intelectual em um complexo desafio jurídico, a biogenética em uma questão ética.“Sejamos realistas”Sem o antagonismo entre incluídos e excluídos, poderemos nos encontrar em um mundo em que Bill Gates é o principal humanista, lutando contra a pobreza e as doenças, e Rupert Murdoch o maior ambientalista, mobilizando milhões de pessoas por meio de seu império da mídia.O verdadeiro legado de 1968 é melhor resumido na fórmula “soyons realistes, demandons l’impossible!” [sejamos realistas, exijamos o impossível!].A verdadeira utopia é a crença em que o sistema global existente pode se reproduzir indefinidamente. A única maneira de ser verdadeiramente realista é imaginar o que, dentro das coordenadas desse sistema, só pode parecer impossível.

SLAVOJ ZIZEK é filósofo esloveno e autor de “Um Mapa da Ideologia” (Contraponto).

Entrevista - BOAVENTURA SANTOS


Boaventura: a hora dos movimentos sociais


Uma das personalidades mais atuantes nas edições do Fórum Social Mundial, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos analisa as possibilidades do governo Obama e enxerga no enfrentamento à crise global uma importante oportunidade para o movimento social.


Fórum – O senhor costuma sempre passar uma parte do ano nos Estados Unidos. Comemorou a eleição de Barack Obama ou chegou a se emocionar com a festa dos estadunidenses?
Boaventura de Sousa Santos – É evidente que pela minha formação marxista não estou acostumado a que os homens individualmente transformem a história e tenho reservas em relação a esperar demasiado de uma pessoa quando o sistema que a elegeu praticamente se mantém o mesmo. Mas, dito isto, não há dúvida para uma pessoa que, para lembrar José Martí, vive nas entranhas do monstro, onde este sentimento de crítica à orientação imperialista agravou-se extraordinariamente durante o governo Bush, que a vitória do Obama foi um acontecimento muito especial. Aliás, especial não apenas para os EUA como para o mundo. Em 2009, um presidente negro vai entrar em uma Casa Branca que foi construída por escravos. Há 40 anos, em alguns estados nos quais ele ganhou eleitoralmente, branco não podia casar com preto. Sua mulher descende de escravos e vai entrar para a Casa Branca como primeira dama. É uma grande transformação simbólica, um grande ato de política simbólica e não uma vitória qualquer. Um ativista dos direitos civis nos anos 60 e 70, ao ver a vitória de Obama, me disse: “Durante todos os anos tenho me considerado um afroamericano, mas a partir de hoje tenho a impressão de que eu sou simplesmente um americano”. É uma transformação simbólica de identidade. Depois que a autoestima dos americanos foi completamente corrompida pela incompetência, avareza, belicismo inconsequente e absolutamente frustrante, esta transformação é importante para os Estados Unidos. Foram guerras ilegais e agressivas que não resolveram nenhum dos problemas apontados, exceto aquele objetivo nunca confessado, que era assegurar o controle da produção de petróleo no Oriente Médio. Apesar de terem sido grande referência para muita gente no mundo, já que a globalização cultural é também a americanização através da grande indústria do entretenimento, a imagem dos EUA degradou-se extraordinariamente, a tal ponto que os americanos às vezes tinham vergonha de visitar alguns países, uma situação absolutamente inaudita para eles. É evidente que deste ponto de vista a eleição do Obama permitiu o orgulho de outra vez serem americanos. Isto pode ser bom e pode ser mau. Pode trazer de volta o triunfalismo e o sensacionalismo porque foram capazes de fazer o provável pior presidente dos EUA, Bush, mas também de eleger um negro num país que teve uma situação de escravatura e discriminação racial tão fortes.
Fórum – E para além dos Estados Unidos?
Boaventura – Essa eleição também é importante para a Europa, que tem uma certa arrogância em relação aos EUA. Mas o que aconteceu nos Estados Unidos não podia acontecer lá. A Alemanha tem 800 mil cidadãos turcos, em uma população de imigrantes por volta de 3 milhões. A França também tem muitos imigrantes com cidadania. Mas quando olhamos para seus parlamentos a composição é quase totalmente branca. Na Inglaterra, de 600 membros da Casa dos Comuns, 15 pessoas não são brancas. Dá-me a impressão de que a Europa se vê em um contrapé da história, porque os EUA são capazes de eleger um presidente que não tem a história a que os europeus se habituaram como sendo as suas próprias, sobretudo depois do que temos visto com a xenofobia, as leis de imigração, os Berlusconi e Sarkozy que têm transformado a Europa em uma fortaleza, a se defender sobretudo dos imigrantes, e que tenta evitar a todo custo que eles possam se estabilizar com suas famílias, que suas culturas possam enriquecer a cultura do continente. Não podemos minimizar em termos políticos o significado da vitória de Obama. É evidente que ela ocorre no pior período dos Estados Unidos, e talvez só por isso tenha sido possível. Não só por causa das guerras que não se pode ganhar e que foram erradas desde o primeiro momento, mas também da crise financeira que vai ter certamente as mesmas dimensões da Grande Depressão. Nesse momento de declínio entra um homem de uma etnia que não é a eurocêntrica que sempre dominou os EUA. Ele pode ter algum êxito e ser a afirmação que a diversidade deste país enriquece politicamente. E, se as coisas correrem mal, tenho certeza de que muitos racistas deste país – que não deixou de ser racista no dia 4 de novembro – vão dizer que as coisas não deram certo porque um negro não deu conta da situação Ele já trouxe inovações extraordinárias de campanha que foram uma vitória para a democracia liberal. Não para a democracia participativa, como a defendemos, mas com alguma virtualidade desta. Um novo conceito entrou no vocabulário político, que são os netroots, pessoas que contribuíram com seu dinheiro, percorrendo bairro a bairro, exatamente uma estratégia das organizações comunitárias, e que o levaram ao poder. Num cenário otimista, se estes grupos não se desarmarem, continuarem ligados, mantiverem a sua rede, sua lista, poderão e deverão cobrar o presidente por promessas que, sem essa cobrança, ele não viria a cumprir. E esta energia não terminaria nas eleições. É uma suspensão histórica que acontece em determinados momentos. Como eu disse, é a realidade que foi almoçar e vamos ver como regressa do almoço. E ela está a regressar.
Fórum – Há sinais de algum movimento organizado já cobrando Obama, como por exemplo o chamado feito na imprensa estadunidense pelo movimento das Liberdades Civis para que já no primeiro dia o presidente tome algumas medidas para sinalizar a disposição de mudança, entre elas a de fechar Guantánamo. Que medidas tomadas no início poderão indicar o rumo que terá esse governo?
Boaventura – De alguma forma aconteceu nos EUA algo comparável ao que aconteceu com o Lula, quando alguém de um grupo discriminado, um metalúrgico, chegou à presidência do Brasil. De alguma maneira os movimentos sociais, com exceção talvez do MST, se desarmaram um pouco no primeiro momento, porque tinham um amigo no Planalto. Não pode acontecer isso nos Estados Unidos. Os movimentos não podem se desarmar, e muito especificamente o movimento negro e o movimento dos direitos civis, que são muito grandes. Política simbólica é algo que tem efeitos reais imediatos mas que não afeta o sistema no seu núcleo duro. Fechar Guantánamo é uma coisa que se pode fazer, não é tão difícil. São 255 detidos dos quais. São todas pessoas detidas ilegalmente e, se não há nenhuma razão para estarem lá, por que não soltá-los? Por outro lado há os que devem ser julgados. O próprio Obama já disse que as comissões militares são tribunais fantoches, uma farsa de Justiça, e portanto devem ser julgados em tribunal convencional. Pode ser um sistema novo, porque no tribunal vão ser mostradas muitas provas consideradas secretas e se considera que isto afeta a segurança dos Estados Unidos. Isso naturalmente cria uma fricção dentro do próprio grupo de Obama. Mas fechar Guantánamo não é tão difícil. É preciso coragem para tirá-los de lá e pensar como poderão regressar aos seus países de origem. Em alguns casos, não poderão. E aí, com toda franqueza, por que os EUA não os podem aceitar se não há nada contra eles? Não cometeram nenhum crime como aquele caso escandaloso dos 17 chineses que foram detidos porque foram encontrados no Afeganistão, sem nada a ver com terrorismo. Foi um ato de autoritarismo da pior espécie, quase primitivo. Há uma possibilidade de Obama responder positivamente a esta demanda e é fácil acabar com Guantánamo porque é um tumor cancerígeno instalado dentro de Cuba.
Fórum – Com a celebração da vitória de Obama, o senhor disse que a realidade foi almoçar mas já estava voltando. Acho que a parte da realidade que já voltou tem a ver com as finanças mundiais. Pergunto qual a palavra certa: estamos vivendo uma crise ou um colapso do sistema?
Boaventura – Nós assistimos de fato a um colapso de uma parte, exatamente o sistema financeiro que existiu até agora. Dá-me a impressão que o neoliberalismo se autodestruiu. Se calhar, nem foi derrubado pelos movimentos sociais que têm lutado contra os paraísos fiscais ou defendendo a taxa Tobin. Tantas coisas que têm sido promovidas pelos movimentos sociais para por fim a este capitalismo de cassino que funcionou nos últimos 30 anos, e ele se autodestruiu. Como Marx disse, o limite do capitalismo é o próprio capital, que tem uma ambição tão grande por acumulação que acaba por destruir as fontes que poderiam lhe dar sustentabilidade, portanto entra regularmente em crise. A crise significa o colapso do sistema financeiro, mas não é uma crise final do capitalismo, é um realinhamento que se vai dar mas não sabemos com que perfil. É difícil caracterizar essa crise. Tudo leva a crer que pelo menos nos próximos anos, se não houver uma política agressiva de promoção de emprego, teremos uma recessão. É preciso lembrar que a recessão de 1929 só chegou ao bolso das famílias em 1933, levou tempo porque o sistema tem uma certa inércia. Mas não estamos em 1929 e penso que existem muitos mecanismos internacionais que não existiam antes e que agora estão a forçar o controle da crise. Uma reivindicação dos movimentos sociais é acabar com o Banco Mundial, FMI e OMC, e que se volte o sistema para as Nações Unidas e a Unctad e instituições onde a Assembleia da ONU tenha um papel mais democrático. O FMI foi autorizado agora a analisar a situação dos Estados Unidos, mas é ridículo, eles não vão se deixar analisar pelo FMI, tampouco pelas organizações dos direitos humanos quando as violações são óbvias neste país. Um dos papeis fundamentais vai ser jogado pelos países que, desde o primeiro Fórum, dizemos que só se eles se unissem teríamos uma mudança no sistema. Os grandes países periféricos, de desenvolvimento intermediário, e com uma população grande, que são o Brasil, Índia, África do Sul e talvez a China; se estes países se unissem, este sistema hipócrita que impõe o liberalismo a todos, menos na Europa e nos EUA, acabaria. Para esses países, é uma janela de oportunidade para impor outras regras. Os próprios chineses estão muito divididos, porque investiram demasiado nos EUA, ao contrário do Brasil e da África do Sul, e estão muito mais dependentes do futuro da economia norte-americana. A última coisa que podem querer é o aprofundamento da crise. Lula deixa muito claro que não pode tolerar o alinhamento total com os EUA, pelo contrário, fez um alinhamento em termos econômicos, de promoção neoliberal, mas politicamente escolheu uma certa solidariedade com os países irmãos na América Latina. Esse regionalismo a emergir na região é muito evidente também na África, com a proposta de uma unidade monetária como na Europa, e também na Ásia há sinais de um certo regionalismo que atende mais às necessidades dos países. Se assim for, poderíamos ter relações menos imperialistas e mais difusas em função de o mundo ser mais partilhado por estes grandes regionalismos que podem enfrentar Europa e EUA. Eu, ao contrário dos que pensam que a solução tem de vir da Europa e dos EUA, penso que eles precisam ser pressionados pelo resto do mundo, porque é fora dos EUA e da Europa que hoje estão as energias transformadoras do sistema. O Brasil, por exemplo, está numa posição diferente, mas se houver uma recessão na China ela vai se refletir no Brasil. Agora, a arrogância unilateral dos EUA, a arrogância unilateral das organizações multilaterais, que são multilaterais apenas no nome, essa terminou. Portanto, vamos ver como as coisas vão se posicionar e que janelas de oportunidades existem para algumas questões no movimento social. Por exemplo, para a Via Campesina, é muito importante eliminar o capital especulativo nesta área de soberania alimentar. No momento, há aqui alguma oportunidade quando as estruturas hegemônicas estão um pouco fragilizadas. Mas não sabemos até que ponto.
Fórum – O presidente Lula, na discussão em Washington sobre a solução para a crise internacional, fala em concluir a rodada de Doha, e isso soa um pouco estranho ao movimento social depois de tanta luta para desgastar a OMC, que hoje realmente não tem mais o papel que pretendia. O que o senhor pensa disso?
Boaventura – O Brasil é a ambiguidade dos países semiperiféricos, tem uma capacidade de manobra que lhe dá uma certa arrogância neste momento. Nota-se na área da biotecnologia, porque o Brasil tem uma grande diversidade, mas tem também uma indústria biotecnológica que quer produzir e portanto as suas posições na área do patenteamento da biodiversidade são muito ambíguas. A diplomacia brasileira é que tem sido muito boa em muitos níveis. O desgaste dos Estados Unidos e do sistema que até agora era imposto na Organização Mundial de Comércio (OMC), e contra o qual o Brasil lutava ao questionar o protecionismo na Europa e nos EUA, criou novas possibilidades para o que este grupo vinha colocando dentro da OMC. O que temos de ver é se o que é bom para o Brasil é também para os países do Quarto Mundo, os periféricos, que não estão nesta fatia intermediária do rendimento mundial. Estou falando da África e de muitos países da América Latina, da Ásia e de muitos outros que são dependentes em relação a estes países, como a Tailândia é em relação à China. Eu ainda temo que este regime seja tão viciado que as potências intermediárias, como no caso brasileiro, quando têm alguma capacidade de manobra, comportem-se como virtuais potências hegemônicas. Aqui, o distanciamento de um Chávez é muito salutar. Ou nós temos uma lógica não-capitalista, uma lógica outra, ou não vamos a lado nenhum. E o Brasil não tem tido de modo nenhum esta posição, pelo contrário: faz desalinhamento político mas alinhamento econômico, o que funcionou até agora porque coincidiu com o grande boom da China, que resolveu muitos problemas brasileiros, se não contarmos com os indígenas e camponeses que estão sofrendo com o alargamento da fronteira agrícola e a destruição da Amazônia, que ocorre no Pará e no Mato Grosso do Sul. Mas isso obviamente permitiu ao Brasil o que até agora não tinha tido, que é uma certa autonomia em relação ao FMI e portanto houve um segundo Grito do Ipiranga: Nós podemos ditar nossa política. Mas a burguesia nacional, altamente transnacionalizada desde a ditadura, não mudou com a democratização, está totalmente vinculada a este sistema, e quando tem qualquer margem de manobra para ter os seus lucros, não vai querer mais mexer no sistema e nem nesta ideia de que não se pode ter tratado de comércio sem direitos sociais e econômicos e sem uma outra política ambiental. Porque há uma crise econômica, energética e climática. Não podemos usar a lógica economicista do neoliberalismo, temos de usar uma lógica mais ampla, e o Brasil está relativamente atrasado porque entrou naquela onda do agrocombustível, que se chama no Brasil biocombustível, mas que é um nome errado porque não é energia renovável e é extremamente destruidor da soberania elementar. Energia renovável são os ventos, o sol e as ondas. O Brasil não tem mostrado muito interesse nisso mas sim nos combustíveis fósseis e no agrodiesel. Como vai se comportar neste momento que vai trazer as questões climáticas para o centro das discussões, mesmo nos EUA. Foi um erro do Lula desvincular-se de algumas outras políticas ambientais que estavam em curso para uma aliança com os EUA, não se dando conta de que seria de curta duração porque não é uma energia renovável. No domínio energético e climático não vejo o Brasil muito bem equipado para uma resposta inovadora porque não foi por aí que a diplomacia se orientou. Mas vamos ver porque não acredito muito naquilo que os governos podem fazer, mas no que os movimentos podem pressionar. Penso que o FSM pode assumir uma liderança maior, com espaço aberto. Se os movimentos sociais estivessem preparados com propostas muito concretas do que pode ser feito, neste momento de suspensão do sistema mundial devido à crise e ao novo governo dos EUA, penso que algumas alianças poderiam ser feitas com organizações e mesmo com partidos dentro do establishment que percebem que suas soluções não funcionaram.
Fórum – Então vou citar uma fala de Chomsky que não vê nessa crise o ocaso da economia dos EUA e que também não vê sinal de alternativas construídas pelo movimento para um momento destes, em um artigo bem recente. Em sendo verdade, isto significa que o processo do FSM falhou ao afirmar a possibilidade de outro mundo?
Boaventura – Estamos provavelmente em um processo de transformação que é quase simétrico a este outro que nós estamos analisando. Desde o final de 1989, quando tivemos a queda do Muro de Berlim, aquelas alternativas socialistas, pelo menos as que haviam sido desenhadas ao longo do século XX, entraram em crise. Muita gente pensou que era só a revolução e o socialismo que estavam em crise, mas que o reformismo socialdemocrata, pelo contrário, teria sua vingança e o seu momento de apogeu. Longe disso. Quando morreu a revolução, morreu também o reformismo socialdemocrata. O capitalismo livre de quaisquer ligações e regulações keynesianas dos Estados tentou libertar-se dos direitos laborais e da regulamentação e foram estes anos que nós tivemos. No fundo, a busca do Fórum Social Mundial de uma sociedade alternativa começou com uma crise que agora atinge este sistema. Começou no final da década de 80 e foi um período de rejeição e um grande inconformismo com a situação de desigualdade social dos últimos anos. E também uma maturidade que ajuda a florescer um sentimento muito vago de que não temos alternativas. Por isso que a gente diz que um outro mundo é possível, é um “outro mundo” porque não sabemos qual é esse mundo. Para muitos movimentos, falar do socialismo é um erro. Se vamos para a África ou para a Ásia vão nos dizer que o socialismo é uma armadilha eurocêntrica como qualquer outra. Não sou tão negativo como Chomsky e é curioso que um intelectual por quem temos um grande respeito possua essa ambiguidade que vem do movimento anarquista. Por um lado, fazem uma luta por todos os movimentos de base e têm uma desconfiança total dos Estados terroristas, mas todos os Estados o são, a começar pelos Estados Unidos. São grandes críticos deste sistema mas ao mesmo tempo são maximalistas. Se quisermos uma revolução ou uma alternativa verdadeiramente pós-capitalista, não imagino que isso seja possível sem termos um Estado que seja efetivamente democrático e popular. Nunca uma ditadura de um partido único. Mas enquanto não tivermos um governo mundial, democrático, que seria o sonho do movimento social internacionalizado mas que está como uma possibilidade utópica, nós, os movimentos sociais em nível regional e internacional, poderíamos ter interlocutores fortes com quem se possa promover políticas fortes. E não conheço nenhuma instância que garanta direitos senão os Estados. Vamos entrar no domínio das religiões e da filantropia? Francamente, não é uma solução socialista. Eu acho que o movimento de esquerda deixou-se desarmar extraordinariamente nos últimos anos, exatamente porque aquela alternativa não era possível, o marxismo deixou de estar na moda, deixou de estar na agenda, de estar nas universidades, no movimento social. Curiosamente está voltando porque a situação financeira veio a provar que Marx tinha muita razão na análise que fazia da sociedade capitalista. O marxismo regressa, mas só pode regressar parcialmente, como uma análise lúcida das crises do capitalismo e, portanto, de que é preciso uma sociedade pós-capitalista. Mas uma sociedade assim não pode ser aquela nos termos em que previu.
por Rita Freire, fotos Andre Veloso

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A CRISE QUE NÃO É CRISE

Apesar de ainda dar maior destaque a alguns números negativos que brotam do desempenho da economia nas estatísticas de dezembro e janeiro, a imprensa brasileira começa a abandonar o tom de apocalipse que marcou a cobertura da crise financeira nas últimas semanas. Alguns analistas conservadores admitem que estamos saindo do fundo do poço. Outros, como o professor Stephen Kanitz, colunista da revista Veja, entendem que o Brasil nem chegou a entrar em crise. Consultoria citada pela Folha de S.Paulo publica um estudo de perspectivas econômicas apostando que o Produto Interno Bruto do Brasil voltará a crescer ainda neste trimestre.Para os especialistas, de modo geral, o Brasil não chegou a entrar em recessão. Para alguns deles, os números indicam que a economia brasileira sofreu dificuldades pontuais, que não devem persistir por um trimestre inteiro.Para ser considerado tecnicamente como recessão, o recuo na atividade econômica precisa produzir a redução do PIB por dois trimestres consecutivos.Outra ediçãoOs indicadores positivos que já aparecem, referentes a janeiro, como a recuperação da indústria automobilística e a volta de investimentos, apontam para a interrupção da espiral negativa. Além disso, conforme observa a Folha em sua coluna "Mercado Aberto", cresce a confiança do consumidor, o crédito foi retomado e a indústria paulista registra a volta das encomendas. O Estado de S.Paulo publica reportagem informando que, após três meses consecutivos de queda, a produção da indústria paulista deve registrar uma elevação de 5,7% em janeiro. Embora o número positivo - assim como os indicadores negativos de dezembro - não possa induzir a conclusões sobre o estado geral da economia, esse dado entra como uma cunha na tendência pessimista do noticiário. Além disso, um estudo da Fundação Getúlio Vargas, feito a pedido da associação das indústrias de construção civil, prevê a criação de meio milhão de empregos e o crescimento da massa salarial em apenas umano. Observe o leitor que todas essas informações foram apanhadas nas edições de quinta-feira (12) dos jornais. Se fossem editadas dessa forma, na ordem e com o destaque que foram apresentadas aqui, qual seria sua conclusão?

Por Luciano Martins Costa - 15/02/2009
(*)Observatório da Imprensa

BULLYING

Bullying - panorama mundial

Dizem que bullying é tão antigo quanto a escola. É certamente um fenômeno de grupo, e grupo em desequilíbrio, é claro.
Por ser um fenômeno sub-reptício, clandestino, dissimulado, mesmo hoje é quase impossível mensurá-lo em escala global.
Dan Olweis, professor da universidade de Beregen, na Noruega, foi um dos precursores no estudo da violência no âmbito escolar. Seus estudos não tiveram muito impacto na época, a não ser sobre poucos núcleos de pessoas interessadas. Mas em 1983, um fato alarmou os habitantes da Noruega: três meninos, com idades de 10 e 14 anos, cometeram suicídio; tudo indicava que haviam sido pressionados por situações graves de bullying. O medo que tomou conta de pais e educadores foi, paradoxalmente, combustível para o entusiasmo de Olweus, porque, para ele, o bullying era um mal a combater. Em 1989, reuniou os apontamentos no livro Bullying na escola: o que sabemos e o que podemos fazer.
O livro alcançou depressa grande notoriedade, porque não apenas apresentava e discutia o problema, como sugeria maneiras de identificar possíveis vítimas e autores, e indicava estratégias para intervir. As escolas de toda a Noruega se mobilizaram e criaram uma campanha nacional contra o fenômeno. Em pouco tempo, o número de casos foi sensilvelmente reduzido - há relatos de que o índice possa ter chegado a 50% de redução.
Na Grã-Bretanha, no início da década de 1990, uma pesquisa mostraba que 37% dos alunos de ensino fundamental e 10% dos alunos do ensino médio admitiam ter sofrido bullying pelo menos uma vez por semana. Em Portugal num universo pesquisado de 7 mil estudantes, um em cada cinco alunos (22%) entre 6 e 16 anos foi vítima de bullying na escola. Na Espanha, o nível de bullying estava em torno de 15% a 20% de estudantes em idade escolar. A partir dessas constatações, a Europa aprovou, além da legislação específica, ações integradas que incluíam países como Espanha, Itália, Alemanha e Grécia.
Nos Estados Unidos, dados coletados pelo Centro Médico Infantil Nacional Bear Facts estimam que perto de 5.700.000 meninas e meninos norte-amenricanos estão envolvidos com episódios de bullying, como autores, vítimas ou autores-vítimas. Quase 3% (cerca de 160 mil) deles passam a rejeitar a escola pretextando doenças ou realmente ficando doentes.
Atualmente, pesquisas e programas de intervenção contra o bullying vêm sendo desenvolvidos na Europa e nos Estados Unidos. As principais conclusões são as seguintes: a maior parte dos alunos entrevistados diz ter sofrido situações de bullying na escola; a maioria dos agressores encontra-se na própria sala das vítimas, principalmente nos anos iniciais; os meninos tendem a ser agredidos principalmente por meninos, enquanto as meninas são agredidas por ambos os sexos; os meninos admitem agredir mais do que as meninas; as agressões ocorrem principalmente durante o recreio e na sala de aula; a metade dos alunos entrevistados espera que o professor intervenha nas situações de agressão na sala de aula; entre os alunos que se dizem agredidos, 50% admitem que não informam o ocorrido nem aos professores nem aos responsáveis.
Será que os alunos não confiam nos professores e nem nos responsáveis? De que eles tem medo?
E um outro dado, o número expressivo de crianças envolvidas em práticas agressivas e a constatação de que o número de alvos é geralmente superior ao número de autores.
A crueldade independe de gênero, assim constatou a professora norte-americana Rachel Simmons, da Universidade de Oxford, ela própria vítima de bullying quando criança, ficou intrigada porque a maioria dos casos registrados na Europa apenas estudante do sexo masculino assumiram o seu envolvimento, tanto como autores quanto vítimas. Segundo dados coletados, e publicados em seu livro: Garotas fora do jogo: a cultura aculta da agressão nas meninas, da Ed. Rocco. No livro ela revela que a agressão praticada pelas meninas não é menos cruel que a dos meninos, e que até a manifestação de raiva das meninas segue regras e tabus sociais. Crescem aprendendo a ser gentis e a sorrir o tempo todo, sem espaço para manifestar os sentimentos que surgem na hora da raiva. A ordem é sempre disfarçar e fingir que não sentem ira. Essa castração de sentimentos afasta as meninas dos métodos convencionais usados pelos meninos, e elas utilizam os relacionamentos para ferir.
Reconhecer o fenômeno bullying numa perspectiva mundial significa ampliar os olhares e sensibilizar, para a questão, autoridades educacionais, pais e professores. Distanciar-se sugere omissão e descuido, postura que beneficia a ação do agressor, uma vez que ele pode justificar-se diante dos adultos dizendo que foi provocado pela vítima, ou que se trata de uma brincadeira. Em geral, com essas desculpas acaba conseguindo a tolerância dos educadores, mediante a minimização da intencionalidade de ferir o outro.
A acomodação e a negligência social corroboram a situação e, de certa forma, ensinam uma lição de vida muito perigosa, tanto para o agressor quanto para a vítima. Fica o aprendizado de que, na prática, na vida social funciona a lei do mais forte. E que as normas existem para ser infringidas ou dribladas de maneira esperta, atitude que, paradoxalmente, pode chegar a proporcionais certo prestígio social.
No dia 24 de fevereiro de 2008, um estudante de 18 anos, em João Pessoa, estado da Paraíba, foi encontrado encapuzado, algemado e com as roupas encharcadas de gasolina. Mais tarde descobriu-se que o rapaz era vítima de bullying na escola, e que forjou o próprio sequestro para chamar a atenção das autoridades. Na solitária dor da humilhação, esse foi o caminho que encontrou para punir os bullies que o desmoralizaram com o aviltante apelido de Chupeta de Baleia. O jovem alegou que, apesar de vítima, tinha sido sentenciado a medidas socioeducativas no ano de 2007, enquanto que os agressores nada sofreram. A desumanização da vítima, somada à impunidade dos atos perversos praticados, dera fama e prestígio aos agressores.
O bullying é uma violência que cresce com a cumplidade de alguns, com a tolerância de outros e com a omissão de muitos.
A escola, por delegação social, deve ser um local de acolhimento e de estímulo ao desenvolvimento e ao crescimento intelectual, sem desprezar as necessidades pessoais sociais e afetivas dos alunos.
Fechado em "cavernas", aprisionados pelo medo e pelas incertezas, adaptamo-nos às coisas conforme elas se apresentam; de costas para a realidade, somos incapazes de avaliar além das evidências.
De costas, desrespeitamos os que ficaram para trás; de costas, ignoramos novas perspectivaas; de costas, rotulamos pessoas e situações; de costas tomamos as sombras como realidade; de costas, acreditamos que zombar do outro é farra de criança e faz parte do convívio. Ao considerar o bullying uma brincadeira, o que se faz é atenuar a culpa, inventando um analgésico para a consciência. Sendo só uma "brincadeira" , o autor não se obriga a olhar para trás, para observar o feito devastador que causou em sua vítima.
A violência e a injustiça são problemas de todos. Quem permite a violência contro o outro está, implicitamente, aceitando a violência contra si mesmo. Mantendo essa posição de cegueira, a violência virá contra ele, mais dia ou menos dia.
Mas há mais: pode ser que a cegueira poupe do sofrimento quem acredita não ver, contudo exacerba a angústia de quem o vive.
Platão no seu livro A República, obra em que trata da pólis, da cidade, da relação entre as pessoas - ele traz a alegoria da caverna, esse "lugar" onde somos mantidos acorrentados. Lá dentro, nada conhecemos, exceto as sombras da realidade; portanto, temos apenas impressões do mundo. É preciso coragem para romper os grilhões da ignorância e do preconceito, para se lançar no mundo das idéias e sobretudo ser uma pessoa que deseja ver além do visível. Sendo assim, segundo Platão, não basta ter visão para poder enxergar. Precisamos da alma, da vontade, do desejo. Enfim, precisamos do sentido.
Cada pessoa tem uma forma peculiar de amar, de cuidar, de proteger, de acolher e de buscar a plena compreensão das coisas. Aquilo que cada um pensa e sente, com relação ao mundo e às pessoas que o habitam, é uma investigação que vai além do uso dos sentidos com que a natureza nos equipou: visão, tato, olfato, audição e paladar.
Não há crueldade maior do que, propositadamente, desumanizar uma pessoa a ponto de roubar-lhe o desejo de viver. E o único objetivo do bullying é humilhar uma pessoa a ponto de desumanizá-la.
A valia de uma vida está sustentada em valores: na sensação de importância, de reconhecimento, de acolhimento, de pertencimento, constatados em mensagens que chegam por meio de olhares, de fala e de atitudes. Quando essas mensagens, porém, chegam distorcidas, as machucaduras são profundas.
O conhecimento nos liberta das amarras e das muralhas construídas para nos proteger, muitas vezes, de nós mesmo. E a liberdade nos faz buscar os porquês, que são renovados diariamente pelos desejos manifestados. Na ausência, a ignorância nos faz prisioneiros do imediatismo e da perspectiva limitada, roubando-nos a liberdade.
As amarras que nos acorrentam no interior da caverna representam o medo, a comodidade, a inércia. O mundo visível é aquele em que a maioria da humanidade está presa, iludida com as sombras da realidade. O outro mundo pertence àqueles que conseguem superar a ignorância, rompendo com as correntes que os aprisionam no subterrâneo e erguendo-se para a luz em busca do essencial, do significativo.
Supostamente protegidos, vivemos num mundo de cegos, distanciando- nos das pessoas reais. Camuflados pela ignorância intrínseca ao ser humano, inventamos uma realidade que nos parece cômoda. A violência é um dos frutos da ignorância, entre outros motivos pela aceitação de crenças muitas vezes ultrapassadas e que não correspondem à verdade absoluta ou parcial.
O panorama global emerge das ações locais. Portanto, o universal não é uma visão surrealista, mas real, acontecendo bem aqui, ao nosso lado, debaixo de nossos olhares viciados por sombras. Por isso, o escritor russo Leon Tolstoi sugere: "Se queres ser universal, canta a tua aldeia." Estar conectado com as questões universais não nos exime da responsabilidade de agir em nosso meio imediato.
Pedagogia da Amizade - bullying: sofrimento das vítimas e dos agressores, Gabriel Chalida (resumo), Ed. Gente

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Entrevista: Prof FERNANDO TULA MOLINA


Falsa Neutralidade

Para Fernando Tula Molina, da Universidade de Quilmes, as crenças de que a ciência e a tecnologia são politicamente neutras e de que as inovações são sinônimo de progresso afastam o conhecimento das necessidades sociais (foto: F.Castro)
16/1/2009
Por Fábio de Castro
Agência FAPESP – A ciência e a tecnologia estão longe de ser politicamente neutras e as novas descobertas não correspondem necessariamente a progressos para a sociedade, segundo o professor Fernando Tula Molina, da Universidade de Quilmes, na Argentina. Para ele, embora façam parte do senso comum, as noções de neutralidade científica e determinismo tecnológico representam obstáculo para uma ciência democrática, capaz de melhorar a sociedade.
Ideias como essas foram expostas por Molina em nove sessões entre agosto e dezembro de 2008, durante o 15º Seminário Internacional de Filosofia e História da Ciência, realizado pelo Grupo de Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia do Instituto de Estudos Avançados (IEA), da Universidade de São Paulo (USP).
O seminário foi um produto do Projeto Temático Gênese e significado da tecnociência: relações entre ciência, tecnologia e sociedade, Universidade de São Paulo, apoiado pela FAPESP e coordenado por Pablo Rubén Mariconda, do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Doutor em filosofia pela Universidade de Buenos Aires, Molina permaneceu no Brasil como professor convidado do projeto. No evento, discutiu o tema "Controle, rumo e legitimidade das práticas científicas".
Para avaliar as implicações científicas e sociais das práticas tecnológicas, o professor propõe uma distinção entre a "eficácia" e a "legitimidade" dessas práticas – e busca elementos conceituais para a compreensão das origens culturais dessa distinção e da complexidade dos diferentes atores envolvidos.
Segundo Molina, que também é pesquisador adjunto do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet), na Argentina, "essa compreensão contribuirá para que se encontrem os caminhos que levem ao acordo requerido pelas políticas científicas nos espaços de diálogo das instituições democráticas".
Agência FAPESP – Uma das idéias centrais desenvolvidas pelo senhor durante o seminário realizado no mês passado em São Paulo é a de que a ciência não pode ser dissociada da política. Como essa questão foi tratada nos debates?
Fernando Tula Molina – As discussões tiveram origem em um Projeto Temático apoiado pela FAPESP dirigido pelo professor Pablo Mariconda, do Grupo de Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia do IEA, responsável pelo seminário. Esse projeto discute a gênese e os significados da tecnociência. Isso envolve questões históricas, filosóficas e sociológicas, mas no fundo tudo está virando uma área importante ligada à política. Tentamos problematizar duas idéias que hoje são muito fortes em nossa cultura: a neutralidade da ciência e o determinismo tecnológico. Essas duas noções estabelecem no imaginário popular uma idéia de que a ciência é neutra, desprovida de política, quando, na verdade, a ciência – e sobretudo a tecnologia – tem muita política.
Agência FAPESP – Como esse aspecto político se manifesta?
Molina – Uma das linhas que está sendo desenvolvida é que essa política pode ser vista com clareza, por exemplo, no chamado código técnico. Esse gravador digital que você está utilizando, por exemplo, possui um design que encerra em si todo o contexto de sua concepção e está ligado a determinadas estratégias. Essas estratégias representam interesses – que, no caso de uma sociedade capitalista, correspondem aos interesses das corporações. São interesses que têm a ver com o consumismo tecnológico. O projeto do gravador já prevê quando ele sairá de linha, isto é, carrega consigo uma estratégia de obsolescência programada. Para que você consuma mais, é preciso que na sua cabeça a aquisição de novos produtos tecnológicos seja entendida como um progresso. Você acredita que está progredindo e tem um aparelho melhor, de última tecnologia. Mas eventualmente os aparelhos mais antigos tinham mais qualidade. Isso é pura política.
Agência FAPESP – Essa é a idéia do determinismo tecnológico? Uma crença de que o produto que acaba de ser lançado é necessariamente melhor, mais eficiente e mais desejável?
Molina – Sim. É uma estratégia de consumo que se baseia na novidade. O produto é um bem cultural que se vale do valor simbólico que tem a "eficácia" na nossa cultura, levando a pessoa a pensar que os produtos desenvolvidos mais recentemente são melhores. Mas isso é uma falácia. Outra falácia está no discurso político oficial dos nossos países: a idéia de que o cientista pode dizer o que é melhor para a sociedade. O cientista não sabe o que é melhor para a sociedade. Não existem nem mesmo elementos conceituais para abordar essa questão. O seminário teve, portanto, a tarefa central de instalar uma discussão e conscientizar sobre alguns erros. Muitos desses erros, como o individualismo, têm origem filosófica.
Agência FAPESP – Como o individualismo é tratado nessa discussão?
Molina – Quando a lógica predominante é a de que alguém só consegue ganhar quando os demais perdem, o resultado é que as pessoas passam a achar que podem ser livres apenas de portas fechadas. O que gostaríamos de opor a essa idéia individualista é a possibilidade de pensar que, ainda hoje, apesar das assimetrias e desigualdades do capitalismo, podemos aprender a nos organizar de um jeito diferente e reaprender a conviver. A convivência é o ponto central da política em um sentido muito antigo, do qual já falava Sócrates. Como todos os atores, tão diferentes, podem conseguir a felicidade e a plenitude no meio de todos, no espaço restrito da pólis? A ideia de democracia que está por trás do seminário é mais profunda que uma noção de igualdade: é a ideia de que somos todos diferentes.
Agência FAPESP – Qual o efeito desse contexto dominado pelo individualismo sobre o desenvolvimento tecnológico e científico?
Molina – Vamos tentar falar do conjunto ciência e tecnologia: a tecnociência. Se as pessoas acreditam que o investimento em ciência e tecnologia leva o país a crescer automaticamente, melhorando a vida da população, temos o determinismo tecnológico. Nesse caso, já que o resultado seria necessariamente bom para todos, o investimento poderia ser feito sem preocupação com a participação da coletividade – esse determinismo tecnológico é favorecido em um contexto individualista.
Agência FAPESP – Então, sem a participação da coletividade nas decisões científicas e tecnológicas, os avanços do conhecimento não chegam a beneficiar a sociedade?
Molina – Acho que é por isso que temos que combater o determinismo tecnológico. Com essa lógica, o investimento não volta diretamente para a população, mas para as corporações. Os investimentos públicos formam técnicos, especialistas e recursos humanos para a universidade e para o sistema tecnológico. Mas essas pessoas poderão desenvolver tecnologias que melhorem as corporações, não necessariamente o país. Se nossa sociedade tem base tecnológica e capitalista, mesmo que se possa desenvolver a melhor tecnologia, ela irá se limitar a desenvolver a tecnologia com melhor custo-benefício. Tudo o que está envolvido com essas tecnologias será avaliado do ponto de vista quantitativo, porque estará orientado pela produtividade. Incluindo as relações com trabalhadores.
Agência FAPESP – Esse tipo de modelo tecnológico tenderia a agravar o quadro de exclusão social?
Molina – Acredito que sim. A tecnologia orientada pela produtividade só é acessível a quem tem determinado poder de consumo. As distâncias sociais que deveriam ser diminuídas por conta da tecnologia começam a aumentar. O crescimento das diferenças sociais agrava a violência. No fim, a tecnologia, que poderia ter um papel de inclusão, acaba fazendo o contrário.
Agência FAPESP – As tecnologias sociais seriam um possível caminho para contornar esses problemas?
Molina – O Brasil tem uma rede muito boa de tecnologia social. Ela tem 700 organizações – a maioria organizações não-governamentais –, sendo 400 muito ativas. Todas pensam em confrontar essa idéia da tecnologia capitalista associada à corporação. Nesse modelo fundamentado na produtividade, não se pode acessar o conhecimento – que deve ser patenteado. O usuário não é dono do meio onde essa tecnologia vai se produzir e não se pode decidir para onde vai o benefício do desenvolvimento.
Agência FAPESP – Essas tecnologias teriam então mais legitimidade?
Molina – As tecnologias sociais têm um papel importante na democratização do conhecimento, mas elas não chegam a garantir a legitimidade da forma como a entendemos. É preciso distingui-la da eficácia. A tecnociência tem eficácia, mas não tem legitimidade social. Esses dois conceitos muitas vezes são confundidos no próprio discurso do desenvolvimento tecnológico, que está baseado na ideia de controle. O que é o controle? Uma coisa é poder controlar a matéria ou a partícula – como pode a nanotecnologia – no espaço e no tempo. Esse é o controle científico, que é necessário e desejável. Mas não suficiente. Outra coisa é poder dar legitimidade a esse controle.
Agência FAPESP – E como dar mais legitimidade ao controle das práticas científicas?
Molina – Para mim, a legitimidade não está no conteúdo das decisões sobre os rumos tecnológicos, mas no jeito como essas decisões são tomadas. Se a decisão foi tomada de maneira coletiva e democrática e daí gerou os rumos e decisões, isso a legitima, não pelo conteúdo, mas pela forma coletiva. O que temos que pensar é quais são os atores em cada âmbito que deveriam participar democraticamente, sendo reconhecidos como diferentes e igualmente importantes, do rumo mais democrático da enorme capacidade tecnológica que já temos. Mas se não conseguimos dar a isso um caráter democrático, então o rumo será tecnocrático e corporativo. A responsabilidade é nossa. A palavra-chave é participação.
Agência FAPESP – Há propostas para melhorar essa participação?
Molina – O controle tecnológico, voltado para o controle da matéria no espaço e no tempo, não tem, em si, nenhuma legitimidade. Propomos dois novos eixos para pensar essa legitimidade: o tempo da educação e o espaço da participação política. Para melhorar essa participação, temos que gerar um espaço de protagonismo social em que os outros atores possam interagir com os cientistas. O especialista tem uma função consultiva importante, um compromisso de indicar as possibilidades, mas não a prerrogativa de ditar os rumos. Com a ajuda dele, o leigo poderia ter a possibilidade democrática de decidir o futuro. Mas isso não acontece. Na nossa organização estamos excluídos de todas as decisões tecnológicas. Não temos o espaço da participação política.
Agência FAPESP – E quanto ao tempo da educação?
Molina – Levamos tempo para educar alguém a ser crítico com a tecnologia e a conhecer sua própria capacidade de decisão e sua autonomia de criatividade. Essa é a dimensão do tempo da educação. Temos que introduzir essa discussão na escola inicial, porque ali as crianças já têm celular, videogames e muitas possibilidades tecnológicas. Seria importante começar a combater cedo a idéia introjetada de que a ciência é apolítica. Ao superar as idéias de neutralidade e determinismo do desenvolvimento tecnocientífico, só nos restará a possibilidade de um desenvolvimento político, democrático, com participação cidadã. Mas esse cidadão crítico ainda não existe, daí a importância dessa dimensão da educação.
Agência FAPESP – Ainda estamos muito distantes da formação desse cidadão crítico?
Molina – Talvez nem tanto. Podemos pensar no que aconteceu com a cultura ecológica. As crianças e as novas gerações já colocam o problema ecológico de forma mais prioritária. Isso ocorreu, entre outros fatores, porque a ecologia começou a ser apresentada às crianças de forma muito forte, desde a escola inicial. Acho que poderia acontecer o mesmo com o problema tecnológico. Para isso temos que começar a refletir com mais clareza sobre lixo tecnológico, obsolescência planejada, qualidade tecnológica, durabilidade, tecnologias para o futuro, tecnologias sustentáveis, tecnologias adequadas aos problemas – e não apenas ao consumo em massa – e tecnologias customizadas, que não impõem uma única solução, como se fôssemos todos iguais.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Entrevista: MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES


“O país não pode mais contar com o BC; governo deve investir pesado no gasto social".
Em entrevista à Carta Maior, a economista Maria da Conceição Tavares diz que o Brasil não pode mais contar com o BC. "A partir de agora, o Banco Central tornou-se uma peça menor no xadrez econômico". Para ela, a grande batalha de 2009 é fortalecer o emprego e o poder aquisitivo do povo. Ao falar sobre 2010, manifesta apoio a Dilma Roussef e diz que ela mais consistente do que José Serra. E lança um desafio ao PT: "o partido precisa submeter seus projetos e ideais à nova realidade mundial.
Redação - Carta Maior
O consenso nacional para derrubar a taxa de juro, unanimidade que agora arregimenta até conservadores de carteirinha, chegou tarde demais, na opinião da economista Maria da Conceição Tavares. Ela acredita que o BC irá fazê-lo em gotas de sereno, a partir de janeiro de 2009, quando esse simbolismo já não terá mais capacidade de reverter a dinâmica deflagrada pela crise. Expectativas pessimistas e revisões em planos de investimento puseram-se em marcha ao longo da omissão persistente da política monetária comandada por Henrique Meirelles nos últimos anos. A ortodoxia encastelada no BC fez a sua escolha. E a cumpriu com fidelidade. “O Brasil não pode mais contar com o BC”, diz Conceição. Seus membros prestaram um desserviço ao país para servir ao rentismo, que os ancora e protege. “A partir de agora, o Banco Central tornou-se uma peça menor no xadrez econômico”, resume e prossegue calmamente. “Reduziu-se a um estorvo apenas; uma irrelevância diante dos fatos, das urgências e das possibilidades que se colocam para a economia e o governo. Essa gente já não consegue mais sequer me provocar indignação, apenas cansaço”. O tom sereno do diagnóstico não é usual, por isso mesmo soa mais forte que pancada. Vindo de quem vem, não poderia haver manifesto de desprezo mais contundente a uma esfera de governo que se fez obsoleta para os interesses do país. A professora, como Maria da Conceição é tratada carinhosamente pelos seus admiradores, discípulos e ex-alunos, e até por adversários, não costuma poupar decibéis na defesa de idéias sempre vigorosas. Que o faça agora em tom plano é um sintoma eloqüente do menosprezo que atribui à instituição e à política monetária nas questões decisivas dos próximos meses.A grande batalha que mobiliza a professora nesse momento, tão difícil quanto foi a do juro, envolve uma conseqüência que faz enorme diferença: perder desta vez seria definitivamente fatal. Evitar esse desfecho é o propósito que devolve a determinação costumeira à sua voz. “Fortalecer o emprego e o poder aquisitivo do povo; em torno disso acontecerá a batalha decisiva para vencermos ou não a travessia de 2009”. É assim que ela define o que está em jogo na economia e na política de agora em diante. “Portanto, meu Deus”, e aqui está de volta a oratória envolvente da decana dos economistas brasileiros, “os que falam em cortar gasto de custeio que me perdoem, não sabem do que estão falando. Política social também é custeio. E se não é tudo, talvez seja o único grande trunfo que o governo controla, a partir do qual poderá agir com eficácia e rapidez diante da crise”.Gastar mais na esfera social, no seu entender, é a injeção de adrenalina capaz de preservar a atividade, o emprego e o poder aquisitivo; ao menos naquele pedaço do Brasil que escapou da linha da pobreza durante o governo Lula e hoje agiganta o mercado interno, proporcionando ao país uma variável que o distingue na resistência ao colapso econômico mundial. Sim, isso poderia incluir até a antecipação de reajuste do salário mínimo, “como propõe o Carneiro”, diz Conceição (NR: economista Ricardo Carneiro,
leia artigo nesta página). “Mas veja bem, estamos diante de uma questão política, não uma unanimidade tardia como parece ser a do juro hoje. Ampliar a despesa social é o que pensamos nós, economistas heterodoxos, assim como dizíamos há meses – anos - que era preciso baixar os juros. Mas por enquanto não há consenso sobre isso; talvez nem dentro do próprio governo. É uma corrida contra o tempo, motivo pelo qual insisto: o gasto de custeio social é a nossa chance de defender o país contra o desemprego e a recessão. Mesmo assim serão tempos difíceis”. Não se trata apenas de vencer um percurso econômico. Conceição antevê nessa travessia a prefiguração do teste eleitoral a que será submetido um projeto que ela ajudou a construir nos últimos anos. Na verdade desde antes quando, jovem ainda, iniciou-se no BNDES e elegeu Celso Furtado e o projeto de desenvolvimento nacional como bússola histórica de sua vida e de sua profissão.A professora Maria da Conceição é amiga de longa data da ministra Dilma Roussef, possível candidata do PT à sucessão do Presidente Lula. Conceição também já foi próxima de José Serra, candidato declarado da oposição no embate sucessório de 2010. Mas Conceição não tem dúvida de que lado estará então. “Serra não é um neoliberal; é bom que se diga e que não se confunda”, antecipa em tom sério. “Conheço ambos. A diferença entre Dilma e o Serra é que a visão da Dilma é mais consistente do ponto de vista histórico. Dilma escolheu o lado que pode apoiar um projeto de desenvolvimento para o Brasil no século XXI. E isso faz toda diferença. Entre o desenvolvimentismo de boca, do Serra, e o projeto ao qual Dilma pertence, eu não tenho dúvida de que lado fica a consistência histórica. E arremata: “Sim, Serra se opunha ao Malan no governo FHC. Mas Serra não se opôs às privatizações nem à política fiscal, concebida por gente da sua influência. Dilma é mais consistente. E não se trata apenas de superioridade no manejo econômico. Sua visão da economia tem uma contrapartida social coerente; e uma contrapartida de democracia consistente”.Com um sorriso de entusiasmo, a professora comemora a notícia de que o PT , junto com a Fundação Perseu Abramo, criará uma Escola de Formação Política. “A agenda neoliberal contaminou toda sociedade; claro, também alcançou esferas do partido”, explica. “A crise econômica coloca esse pensamento em xeque e abre espaço para o PT retomar seu programa dos anos 94 e 98. Era um bom programa de reformas para o Brasil”, comenta, mas sem saudosismo - “perdemos com um bom programa, sempre é bom lembrar“. E aconselha como se fosse ao mesmo tempo cronista eqüidistante e personagem do mesmo enredo: “O PT precisa submeter seus projetos e ideais à nova realidade mundial. Isso requer estudo e reflexão. Essa crise não é como a de 30. É uma crise de paradigma, inclusive de paradigma industrial, o que não ocorreu em 30. É muito sério. Portanto, é hora de refletir, esclarecer, debater. O partido deve fazer isso sem perder a serenidade”, pontua preocupada: “Existe o horizonte político amplo, mas uma proposta de governo tem que oferecer respostas condicionadas às circunstâncias do país, agravadas pela crise mundial”A seguir, trechos da entrevista de Maria da Conceição Tavares à Carta Maior
I)Controlar a conta de capitais com um BC desse tipo?Acho difícil.A inflação está caindo, desaba em todo o planeta e aqui? Aqui eles mantém o juro no céu, a 13,75%. Para quê? Para atrair dólares? Para evitar fuga de capitais ? Mudou a conjuntura mundial, não existe mais liquidez internacional para ser atraída. Essa política é anômala: não vai atrair um dólar furado com essa taxa. Tampouco impedirá a fuga em busca de segurança. O que pode impedir esses movimentos de capitais é a taxa de juro zero decidida pelo Fed. Vamos torcer que seja assim. Mesmo porque, não vejo como controlar a conta de capitais num país que não controlou nem operações especulativas com derivativos. E elas foram feitas aqui, sim senhor; não foram contratadas apenas nos paraísos fiscais. Estavam aí à vista de todos, a começar do BC, e nada se fez. A verdade é que fizemos na área financeira uma abertura mais radical do que em qualquer outra. Talvez o Estado brasileiro não disponha no momento nem de mecanismos, nem de pessoal, e menos ainda de uma lógica de estado para controlar o movimento de capitais.
II) O Banco Central brasileiro virou um caso psicanalítico internacionalOs membros do Copom agem por necessidade de auto-afirmação, dizem seus defensores. Mas e o país? Temos um BC que se tornou um caso psicanalítico internacional... A intransigência tornou-o irrelevante para o país, essa é a verdade; e isso é uma marca grave. O BC brasileiro é um ponto fora da curva mundial. Um estorvo; uma peça menor no esforço do governo para defender o país contra a recessão. Simplesmente, não se pode mais contar com essa gente para nada. Na verdade, eu já não esperava nada desse grupo de interesses. Hoje, quando eles falam nem indignada eu fico; me dá cansaço.
III) A ortodoxia e o tamanho da crise apequenaram o BCA turma do BC deixou a coisa passar a tal ponto que agora temos um paradoxo: a maior taxa de juros do planeta e, quando fizerem os cortes, será tarde demais. Nada do que possam fazer em gotas simbólicas, a partir de janeiro, terá importância na ordem do dia para enfrentar a crise. O governo não deve esperar mais nada daí. O BC ficou desimportante. As expectativas já foram formadas. Os interesses se aferram a sua lógica. Veja o caso da Vale do Rio Doce; uma empresa que está nadando em dinheiro e vem o Agnelli demitir e falar em exceção trabalhista! A rigidez monetária jogou lenha nessas distorções e agora não serve mais para nada. O governo precisa olhar para frente e esquecer o BC.
IV) Governo deve agir seletivamente e administrar o mercado de câmbio e créditoO fato grave é que as taxas de juros estão subindo na ponta; o crédito continua caro e curto. Há uma pressão danada pela rolagem de dívidas contraídas por empresas dentro e fora do país. Isso ainda não está resolvido. E é sério. Para a rolagem externa teremos que tomar medidas adicionais em 2009. Não tenho a certeza de que a linha de US$ 30 bi criada pelo FED para países como Brasil e Coréia será suficiente. Talvez precisemos de mais, mesmo tendo o governo destinado também US$ 20 bi das reservas para essa finalidade.Para o crédito interno não adianta mais liberar compulsório (percentual dos depósitos recolhidos obrigatoriamente pelos bancos no BC). Você libera, a banca privada não repassa; não chega na ponta e o custo do financiamento ainda aumenta. O governo deve agir direto, cada vez mais. Setor por setor, caso a caso. O Estado deve alocar recurso onde for mais relevante e administrar o mercado de crédito no piloto manual. É o que temos feito na área da construção civil e no mercado automobilístico. Deve-se aprofundar a ação estatal nessa direção. Não haverá normalidade de crédito via mercado; esqueçam o que diz o Meirelles e o BC. Não têm mais nenhuma importância.
V) Cortar o juro agora serve para reduzir custo da dívida interna; pode liberar fôlego fiscal para investimento públicoPara ter algum sentido, o BC teria que derrubar a taxa de juro em pelo menos um ponto em janeiro, mas o farão de forma desprezível, em 0,25 ponto. Não falo para a atividade econômica, mas para reduzir a pressão fiscal no pagamento de juros da dívida pública. Isso permitiria liberar fôlego para a despesa social do governo. Esse é o ponto decisivo agora: agir na frente do emprego e do gasto social. A política do BC não fará mais nada pelo país. Por caminhos opostos, atingimos o mesmo esgotamento da ferramenta monetária que se verifica agora nos EUA; aqui, por fidelidade dos membros do BC aos interesses que representam, em detrimento dos interesses do país. Eles fizeram uma escolha e foram fiéis a ela até o fim. Absoluta disciplina. Infelizmente a escolha não foi o país, mas o mercado, de onde vieram e para onde voltarão.
VI)Custeio do Estado não é gasto com lápis e borracha; é gasto com gente, gasto social que tirou milhões da pobreza nos últimos anosO fato é que a alavanca monetária chegou a um ponto de irrelevância. É hora da política fiscal: quem fala em corte de custeio nesse momento que me perdoe, fala sem saber do que está falando. Estão esquecendo: despesa social também é custeio. É o espaço que temos para defender o país, o emprego e a demanda interna. Os grandes projetos do PAC são importantes; os projetos privados associados a exportação de commodities também são de grande envergadura. Não vão parar porque são planos de longo prazo. Mas geram pouco emprego. Terão efeito reduzido na dinâmica do mercado interno. O que faz a diferença e está ao alcance do governo é o gasto de custeio do Estado. Claro, não falo de aumentar salários de assessorias etc. Gasto de custeio não é lápis e borracha; é principalmente gasto social. Esse tem que aumentar e aumentar urgente. Naturalmente, em torno disso não existe o consenso que se vê agora, esse consenso tardio pelo corte dos juros. Ampliar o gasto de custeio, na esfera social, é algo que os economista heterodoxos defendem; mas o mercado não. Talvez nem mesmo dentro do governo exista clareza sobre isso. Sim, é preciso agir com os instrumentos disponíveis; até antecipar o reajuste do salário mínimo, se for o caso, como diz o Carneiro (NR: Ricardo Carneiro, economista da Unicamp). E fazê-lo não só na esfera federal, mas também nos Estados e municípios. Um mutirão público pelo gasto social, contra a recessão.
VII) O PT deve se preparar; se é certo que vai criar uma Escola de Formação Política chega em boa hora; a crise exige renovaçãoO partido deve se preparar para entender a dimensão da crise e agir sobre ela. Estamos diante de algo distinto de tudo o que se viu até hoje em termos de crise capitalista. Só é igual a de 30 na gravidade; e pode ser pior. Em 30 não tivemos uma ruptura de paradigma, exceto para romper o padrão ouro. Mas a indústria era fordista e continuou fordista, durante e depois da crise. Agora, parece que o padrão industrial se esgotou. Pior: ao contrário do mundo que emergiu após 30, não se vê uma força ordenadora capaz de injetar coerência na economia mundial. Ninguém sabe para onde vão os EUA; nem eles. Significa que a desordem pode demorar muito tempo. Se o PT, finalmente, criará uma Escola de Formação Política, só tenho a comemorar. Chega em boa hora. O fato é que o colapso da agenda neoliberal tem que ser profundamente discutido. E isso tem a ver com o PT também. Essa agenda penetrou as entranhas de toda sociedade e o partido não foi poupado. Vide a posição que se esboçou em relação à Previdência Social, por exemplo; e mesmo em relação à dita autonomia do BC. Pallocci diz que está fora se o PT continuar criticando o Banco Central? É um favor que ele nos faz. VIII) Quando me aproximei do PT em 1989 achavam que eu era reformista; hoje estou à esquerdaO PT já teve uma agenda consistente de reformas, aquela de 94 e 98; trata-se de retomá-la; submetê-la aos desafios da atual crise e abrir um ciclo de debates e de esclarecimento dentro do partido com dois horizontes: o de longo prazo, na análise desse colapso e do colapso do ideário neoliberal no mundo. Mas no curto prazo é preciso avaliar o que é possível e necessário para defender o país da desordem internacional. Não se pode confundir os dois tempos, ou daqui a pouco tem gente querendo reduzir jornada de trabalho e manter salário. É bonito. Mas vai acontecer? Não. Então não dá para jogar o partido em coisas desse tipo. É preciso ter respostas de curto e longo prazo.É uma agenda para um debate interno. Fico feliz que o partido, finalmente, se abra a isso. Quando entrei no PT em 1989 muitos me olhavam com reticência; achavam que eu era uma reformista conservadora. Hoje dizem que estou à esquerda, mas eu não saí do meu lugar. É uma boa hora para resgatar a vida intelectual dentro do partido.
IX) Dilma tem uma visão histórica mais consistente que a do Serra Estou otimista com a chance da Dilma ocupar a Presidência da República. Sim, já fui muito ligada ao Serra; conheço ambos. A diferença entre o desenvolvimentismo da Dilma e o do Serra é que a visão histórica e política da Dilma é mais consistente. O Serra, diga-se, não é um neoliberal; e isso é bom porque vai elevar o debate eleitoral em 2010. Mas o desenvolvimentismo do Serra é um desenvolvimentismo de boca. Ele se opunha ao Malan, é verdade (no governo FHC). Mas nunca se opôs às privatizações nem à política fiscal ortodoxa, concebida por gente da sua influência. É muito diferente da Dilma. De qualquer forma, fico feliz que a luta seja entre os dois. O país vai ganhar com isso. A sociedade entenderá as diferenças entre projetos que têm nomes parecidos, como desenvolvimento, mas que envolvem forças e concepções distintas, especialmente na sua dimensão social e na sua correspondência democrática. É aí que está a força da Dilma.Será mais fácil negociar um projeto nacional de desenvolvimento tendo Serra e Dilma no embate. Melhor do que ter uma sociedade rachada entre um neoliberal de direita e um candidato nosso, de centro esquerda. Ontem, como hoje, e amanhã também, teremos que negociar um projeto nacional. Duas candidaturas que ao menos falem uma língua próxima facilitará a compreensão dos brasileiros; ajudará a somar forças. É mais uma razão para o PT se preparar e definir, afinal, qual é o desenvolvimento que defende. O resultado de 2010 dependerá de tudo isso. Mas, sobretudo, vai depender da nossa capacidade de atravessar com sucesso 2009. Espero que seja um bom ano. Para todos nós. E para o bem do Brasil.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A CRISE DAS UNIVERSIDADES FEDERAIS

11 de Janeiro de 2009
O TCU denunciou 14 universidades federais entre as quais a UFMG, por uma serie de irregularidades, como a dispensa de licitação para a realização de obras e a realização do vestibular, a falta de publicidade e transparência nas suas contas, a terceirização de atividades permanentes, pagamentos exorbitantes de bolsas de estudo, manobras para evitar o pagamento de impostos e contribuição previdenciária e outras.
A veiculação das denúncias pela imprensa inquietou os atuais dirigentes das instituições federais de ensino (IFES). A reitoria da UFMG procurou se defender com o apoio de um
manifesto assinado por oito de seus ex-reitores. É uma reação patética. Os signatários estranham, com efeito, as acusações do TCU porque, dizem, que "no passado nunca fizemos diferente" do que só agora o Tribunal resolveu questionar. Falando dos dirigentes atuais da UFMG eles sugerem para si mesmos a carapuça de "servidores públicos de conduta ilibada e vigorosos defensores da educação pública e dos valores éticos a ela associados" e, assim, vítimas injustiçadas do "legalismo" do TCU...
Nada lhes parece, de fato, mais sacrossanto do que o que fazem: desenvolvem a universidade construindo novos prédios, aumentando vagas, fomentando as pesquisas, dando uma mão a alguns estudantes carentes.... Descumprem exigências legais que salvaguardam o caráter público da universidade? E daí? Afinal, se o governo federal fecha as torneiras do financiamento público o que podem eles fazer senão reforçar as fundações privatizantes que lhes dão recursos para a expansão das universidades?
A outra face, objetiva, do "manifesto dos ex-reitores" é, no entanto, uma "jogada para a platéia" para empurrar a sujeira das suas práticas político-administrat ivas para debaixo do tapete. Um pífio e defensivo rodeio retórico que silencia sobre a substância das imputações do TCU. O Tribunal já constatou as irregularidades no acórdão de número l646, de 2002 e o MP do Trabalho denunciou e condenou a UFMG por irregularidades na contratação de pessoal, em 2007. A UFMG foi multada em R$5 milhões de reais e terá que promover concurso público para absorver pelo menos 750 servidores do Hospital das Clínicas contratados irregularmente. Não se trata, portanto, de simples má fé e/ou falta de informação, mas da forma mentis de homens e mulheres do sistema que nunca entenderam, senão na retórica, como atuar de acordo com o espírito público republicano.
Os signatários do documento não dizem, além do mais, uma só palavra para parabenizar o TCU pelo seu redescoberto papel fiscalizador, defender a continuação da investigação até o fim, punindo os responsáveis e corrigindo o comportamento de instituições que costumam, com a habitual afetação retórica, confundir a consagrada "autonomia universitária" com soberania, ou seja, manter-se acima das leis que fazem do Brasil um estado democrático de direito e soberano.
O laudável zelo fiscalizador do TCU que os ex-reitores parecem lamentar ao invés de louvar, é compreensível. O ex-reitor da UNB, Timothy Mullolland, chegou ao exagero de gastar o dinheiro da Fundação Universidade de Brasília (FUB) para decorar seu apartamento funcional! O fato chocou a todos, permanecendo por muito tempo em destaque na mídia. O caso clamoroso serviu para alertar o TCU que, em resposta aos ex-reitores muy amigos da UFMG, pode fazer, para o maior aplauso da cidadania, o mea culpa pela falta de fiscalização: se erramos no passado em não fiscalizar, temos agora as mais sérias razões para não repetir o mesmo erro. . .
É um debate importante, envolvendo de cheio o problema das fundações que captam recursos privados para as universidades federais, sempre mais abandonadas pelo Estado. Esperamos que ele se desenvolva paralelamente ao embate judicial entre o TCU, o MP do Trabalho, a UFMG e demais universidades federais, conheça e debata as perversidades de fundo da vida dessas instituições e apure as causas e responsabilidades políticas e administrativas por este processo degenerativo. É este um quadro que se apóia no progressivo e visível processo de privatização das suas atividades, que se acentuou nos últimos decênios, com o paralelo desgaste das relações internas, envolvendo docentes, funcionários e estudantes. A promíscua confusão entre dinheiro público e privado, gerido em dueto pelas universidades em estreita aliança com as fundações fortalecidas pelos reitores comprometidos com a linha política da privatização, sustentada pelos últimos governos, criam privilégios, diferenciações de interesses e um permanente clima de conflito entre os integrantes do quadro docente e administrativo.
(*) As denúncias do TCU a que nos referimos no artigo acima e a sua divulgação pela imprensa já provocaram novos e auspiciosos desenvolvimentos para o debate e um novo tratamento político-institucion al da questão. O Ministério da Educação e Cultura (MEC) já anunciou modificações nas exigências que fazia às Universidades quanto a utilização das verbas públicas ao mesmo tempo que procura redefinir o papel das fundações. O professor Cid Velloso, ex-reitor da UFMG e frequente comentador das matérias do nosso blog, também se apressou em desenvolver o posicionamento que assumiu como assinante do manifesto dos reitores. O ex-reitor declara numa nota publicada em 12/01/09 na página 8 do
Jornal Estado de Minas que a questão "está necessitando uma abordagem mais ampla" e avança várias considerações. O reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Naomar de Almeida Filho, também assinou um artigo em que fala das "perversões da autonomia". São estas importantes contribuições para a continuação e o aprofundamento desse debate aberto à participação de nossos leitores. Voltaremos em outro momento ao assunto para considerar, no espírito e na letra, o mérito desses posicionamentos, que no nosso entendimento ainda apresentam vários limites para o mais completo esclarecimento e tratamento correto da questão.

Fonte:
www.massote.pro.br

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Entrevista - CHICO DE OLIVEIRA


Entrevista Chico de Oliveira - Política 06/01/2009

"Vargas redefiniu o país na crise de 30; a chance é que o PT faça o mesmo na primeira grande crise da globalização"
Em entrevista à Carta Maior, Chico de Oliveira analisa o que considera ser a primeira grande crise da globalização capitalista. "Estamos diante de algo maior que a própria manifestação financeira da crise; algo que persistirá para além dela e condicionará todos os passos da história neste século", afirma. O sociólogo torce para que o PT tenha coragem e capacidade para ajudar o país a deflagrar um ciclo inédito de investimento pesado na economia. "Algo como criar cinco Embraer's por ano", exemplifica.
Redação - Carta Maior
Dona Joventina preconizava para o filho Francisco Maria Cavalcanti de Oliveira uma carreira venturosa no sacerdócio. Chico, porém, era apenas um em uma prole de onze; isso deve ter facilitado a desobediência ao roteiro materno. O desvio do percurso o levaria ao engajamento profano que começou com a adesão ao Partido Socialista, aos 20 anos de idade; mas nem por isso a rota gauche o afastou da leitura dos evangelhos. É tomando emprestado a palavra dos profetas que o sociólogo nascido em 7 de novembro de 1933, em Recife, companheiro de Celso Furtado no início da Sudene, fundador do PT e do PSOL, hoje um analista mordaz de ambos com reflexões que incomodam mas não são ignoradas, resume as esperanças –“talvez fosse melhor dizer a torcida”, retifica— em relação ao papel que a esquerda brasileira, especificamente o PT, poderá jogar diante do que classifica como a “primeira grande crise da globalização capitalista”.
“Aproveitai as riquezas da iniqüidade, aproveitai”, acentua o sociólogo, doutor honoris causa pela USP e pela UFRJ. Chico adiciona à evocação de São Paulo um sentido de engajamento que resume a brecha diante da qual, à moda gramsciana - cético na razão, otimista na ação, torce por um aggiornamento do projeto petista para a sociedade brasileira.
“Naturalmente, todas as outras crises foram globais devido ao peso da centralidade capitalista no processo, mas essa”, observa com entusiasmo intelectual na voz, “é a primeira crise da globalização do capital; uma crise de realização do valor que tem na derrocada financeira sua epiderme mais visível, mas não a essencial”.
O cerne do colapso sistêmico decorreria, no seu entender, da fantástica ampliação da fronteira da mais-valia nos últimos 20 anos. “Oitocentos milhões de pares de braços foram incorporados ao mercado de trabalho mundial com o avanço econômico da China e da Índia”, dimensiona. A riqueza produzida por esse perímetro dilatado da exploração capitalista –“que alia salários miseráveis à tecnologia de ponta”-- agregaria ao sistema “uma usina de extração de mais-valia relativa de proporções inauditas”. Um fluxo incapaz de se realizar nos mercados de origem, “onde é muito baixo o custo de reprodução da mão-de-obra”.
O sociólogo extrai daí a convicção de que se trata de uma crise do modo de produção no apogeu da globalização capitalista. Não apenas uma derrapada na gestão financeira do sistema, como acreditariam analistas da própria esquerda. Se a potencialização da mais-valia gerou sobras de capital na periferia para sustentar o déficit norte-americano –a China tem US$ 1,1 trilhão investido em títulos do Tesouro - e barateou o consumo no coração do império, numa endogamia até certo ponto vitoriosa, por outro lado não elevou os salários de ricos, nem de pobres. Ao contrário, depauperou o mundo do trabalho urbi e orbe. “A quebradeira imobiliária é um sintoma dessa contradição clássica, amplificada, entre a globalização do valor e a impossibilidade de realizá-lo na mesma escala porque não há poder aquisitivo equivalente, nem na periferia nem no núcleo do sistema”, reafirma.
Chico pede calma ao entusiasmo afoito; não, ele não antevê um horizonte de derrocada final do capitalismo –“não se destrói o capitalismo, o capitalismo se supera”, reporta a Marx. Mas os dias que correm sinalizariam no seu entender uma inegável e brutal reacomodação de forças em escala planetária; aquilo que, insiste, será periodizado no futuro como a primeira grande crise da globalização capitalista. É aí que enxerga um hiato no hegemon norte-americano. A trinca descortina também uma fresta de esperança política —“torcida”, como ele prefere-- em seu ceticismo intelectual. É através dela que Chico contempla a oportunidade crucial para o país, para a esquerda e para o PT –“aproveitai as riquezas da iniqüidade, aproveitai ...”
A urgência norte-americana em lamber as próprias feridas – “disso será feito em boa parte o governo Obama”— inaugura uma janela obrigatória de rediscussão do desenvolvimento brasileiro. É valioso lembrar que o raciocínio parte do autor de um texto clássico da radiografia analítica do desenvolvimento nacional. É de 1975 seu famoso ensaio “Economia brasileira: crítica da razão dualista”. Com ele, e com o golpe de 64 fechou-se o ciclo da crença na existência de dois brasis, um capitalista, outro atrasado, dualidade que legitimaria sonhos reformistas desastrosos ancorados na suposta existência e disposição modernizante de uma burguesia nacional “aliada”.
O hiato de reacomodação capitalista que se abre agora, ao contrário, reservaria à esquerda, no seu entendimento, uma paradoxal possibilidade de repetir a história modernizante , mas não como farsa –“o que seria uma tragédia”-- e sim como ousadia e criatividade condensadas em um projeto democrático popular. “Trata-se de recriar um 1930 do século XXI”. A alegoria serve apenas para resumir o torque que se cobra das forças dispostas a superar a crise como requisito obrigatório para derrotar a coalização conservadora liderada pelo PSDB em 2010. “Na grande crise capitalista de 1930 tivemos uma reordenação do desenvolvimento brasileiro enfiada goela abaixo da plutocracia paulista”, lembra Chico de Oliveira para dar o crédito à visão de estadista de Getúlio Vargas. “Aquele foi um projeto arquiteto por cima; desta vez trata-se de fazer uma reordenação tão profunda,ou maior; mas induzida por baixo, pelas forças sociais da base da sociedade brasileira em nosso tempo”.
O PT, no seu entender, seria o operador desse aggiornamento histórico do desenvolvimento. “É quem dispõe de massa e de liderança, enquanto os demais agrupamentos socialistas constituiriam a ponta de lança instigadora do processo”. Em defesa provocativa dessa tese, o sociólogo exemplifica cobrando a metamorfose daquilo que já caracterizou, no calor do debate político, como “uma nova classe”: “O PT tem a força sindical; a estrutura sindical tem todos os fundos de pensão sob seu controle”, cutuca. A chance de emancipação do país na atual crise seria uma inusitada demonstração de competência e ousadia política da esquerda na canalização de fundos públicos para deflagrar um ciclo inédito de investimento pesado na economia. “Falo em se criar algo como cinco EMBRAERs por ano; acelerar o crescimento e dar um novo rumo à economia e à sociedade”, entusiasma-se no seu raciocínio. “Se um estancieiro gaúcho fez isso na crise de 1930 porque uma Dilma, que honestamente só conheço através da má vontade explícita da mídia; ou, quem sabe, um Gabrielli (presidente da Petrobrás), não poderiam ser instrumentalizados para fazê-lo na crise atual?”. A pergunta recebe da mesma voz uma ponderação pausada: “Devemos tratar essa possibilidade com uma discussão ampla e aberta; não oficialista, tampouco sectária, menos ainda cravejada de acusações entre petistas e não petistas. O que está em jogo é uma reacomodação brutal de forças; se ela devolver o poder aos tucanos aí sim estaremos fritos: eles ficarão aí mais dez anos”.

Leia a seguir trechos da entrevista de Francisco de Oliveira à Carta Maior:

Carta Maior - A crise financeira atual repõe a centralidade do trabalho, ou seja, devolve à esquerda o sujeito histórico que ele acreditava ter se esfarelado na história?
Chico de Oliveira - Na verdade, não concordo que essa seja uma crise financeira; tampouco acho que a sua origem esteja nos mercados financeiros centrais. A meu ver estamos diante de uma crise da globalização do capital. Todas as outras também foram crises globais, claro, devido à centralidade do capitalismo norte-americano. Mas essa crise não floresce exatamente num ponto geográfico; à rigor, se formos localizá-la seria na incorporação da mais-valia gerada na China e na Índia nos últimos vinte anos; novidade esta que influenciou o conjunto da globalização capitalista e redundou no atual colapso; uma crise de realização do valor. O sintoma financeiro é sua manifestação mais evidente, mas não a sua essência.
CM - A essência seria o barateamento da mão-de-obra mundial?
Chico - A essência é a impossibilidade de realizar o valor gerado por ela; ou seja a mais-valia extraída da incorporação adicional de 800 milhões de novos operários baratos ao mercado de trabalho mundial. Isso produziu uma revolução na medida em que dobrou ou triplicou a oferta de mão-de-obra oferecida ao capitalismo, dilatando a fronteira da mais-valia, sem contudo propiciar uma expansão equivalente da capacidade de realizá-la.
CM - Por quê?
Chico - Porque o custo de reprodução de mão-de-obra nas sociedades onde se expande a nova fronteira da mais-valia, casos da China e da Índia, principalmente, é muito baixo, ainda que a exploração esteja aliada à tecnologia de ponta. Estamos diante de uma crise clássica de realização do valor, amplificada; uma crise da globalização capitalista. O colapso das hipotecas nos EUA é a manifestação disso. De um lado, a produção na China e na Índia barateou o consumo norte-americano; propiciou também sobras de capital na periferia para financiar o Tesouro dos EUA. A China sozinha tem mais de US$ 1 trilhão aplicado em papéis do governo Bush. De onde saiu esse dinheiro? Certamente não foi geração espontânea. É mais-valia extraída do operário chinês que não se realiza lá porque o custo de reprodução da mão-de-obra local é baixíssimo.
CM - Mas a crise não marca o esgotamento dessa endogamia China/EUA?
Chico - Ela funcionou bem durante algum tempo e continuará a girar porque é proveitosa aos dois lados. Ao mesmo tempo a engrenagem esfarela o mundo do trabalho urbi e orbe; os assalariados norte-americanos simplesmente não têm fonte de renda para o padrão de consumo que ainda desfrutam; estão devolvendo casas e vão morar em garagens coletivas, dentro dos seus carros. Obama teria que elevar brutalmente o poder aquisitivo dessa gente para contornar a crise. Fará isso? Honestamente, não sei dizer. O fato é que as implicações desse processo devem ser estudadas cuidadosamente; estamos diante de algo maior que a própria manifestação financeira da crise; algo que persistirá para além dela e condicionará todos os passos da história neste século
(NR – CM levantou alguns dados que reforçam as preocupações de Chico de Oliveira: a incorporação ao mercado capitalista da produção chinesa, indiana e de países da antiga União Soviética colocou trabalhadores de todo mundo em concorrência internacional direta pela primeira vez na história; trabalhadores ocidentais tornaram-se minoria num mercado mundial que ganhou 1,2 bilhão de operários adicionais nos últimos 30 anos; 350 milhões de trabalhadores treinados, e mais caros, do Ocidente, responsáveis pela maior parcela da produção global até recentemente, estão sendo desalojados de empregos e salários; das 3 bilhões de pessoas ativas no mercado global hoje, metade ganha menos de US$ 3 por dia.A China, a nova oficina do mundo, tem um custo/hora do trabalho de US$ 0,60, contra média de US$ 30/h na Alemanha, US$ 21 nos EUA e cerca de US$ 4,50 no Brasil .Resultado: dados compilados pela Comissão Européia revelam que a parcela de riqueza destinada atualmente aos salários é a mais baixa desde 1960 (o primeiro ano com dados conhecidos). Em contrapartida, a riqueza abocanhada pelos detentores do capital financeiro vinha batendo recordes seguidos até o colapso atual. A produtividade ao mesmo tempo não pára de crescer –desde 2001, cresceu 15% nos EUA e saltou em média 8% a 10% ao ano na China. Entre 1990 e 2004, a participação dos produtos chineses no total de bens importados pela AL cresceu de 0,7% para 7,8%. No mesmo período, a fatia dos produtos brasileiros na região subiu de 5,3% para 6,5%).
CM - O que o senhor está dizendo é que a tentativa de equacionar a crise a partir de sua manifestação financeira não basta ?
Chico - É isso. A contribuição de Chesnais à compreensão da dinâmica capitalista foi importante num outro momento porque os marxistas sempre tiveram dificuldade em lidar com a questão financeira. Mas a interpretação chesniana não dá conta da crise atual. É uma crise de realização do valor.
CM - 1930 também foi uma crise de realização do valor e se resolveu....
Chico— Uma crise de realização do valor circunscrita ao território das economias centrais. Ainda assim exigiu um Roosevelt; e uma Guerra mundial para ser contornada. Esse paralelo apenas reafirma a gravidade do que temos diante de nós; e o que temos é uma crise da globalização à 29; o ferramental dos anos 30 não dá conta disso.
CM - O receituário keynesiano?
Chico - As opções keynesianas valiam para uma economia fechada que podia conter a livre movimentação de capitais; hoje você precisaria de um dinheiro mundial para regular a parafernália financeira; socorrer déficits em conta corrente e harmonizar desequilíbrios comerciais etc. O dólar não é isso; o dólar é uma moeda hegemônica, não é o dinheiro único que o instrumenal keynesiano necessitaria para ter eficácia atualmente.
CM - Estamos diante de um longo processo de solavancos e limbo sem redenção...
Chico - Uma crise longa, dura, que exigirá reacomodação brutal de forças e vai impor mudanças em todo o mundo e no Brasil também. Mas não tenhamos ilusão: o capitalismo não chegou ao limite. Tampouco é o fim da associação China/EUA; de algum modo ela prosseguirá porque é proveitosa aos dois lados. Ademais, o capitalismo não se destrói, ele é superado, como o leitor atento de Marx bem sabe.
CM – Que espaço sobra para a periferia do sistema, caso do Brasil, entre outros?
Chico – Estamos emparedados entre a concorrência chinesa e a desordem financeira no coração do capitalismo. A crise nos pega no meio do caminho e, naturalmente, não podemos regredir e adotar um padrão chinês de salários de miséria. Alguns até gostariam, mas não dá, felizmente não dá mais e tentar seria uma calamidade social de proporções incalculáveis.
CM - Qual opção à paralisia, se é que existe uma - e viável?
Chico – Não existiu Vargas em 1930? A opção é uma soma de coragem política e investimento público pesado. Criar algo como cinco EMBRAERs por ano em diferentes setores; promover uma superação do modelo ancorado-o agora em forças sociais da base da sociedade. Carlos Lessa sugeria isso no BNDES, no começo do governo Lula; não deixaram...
CM - Mas o Brasil de Vargas não existe mais...
Chico - Para Getúlio também não foi fácil, mas ele fez. E fez à revelia da plutocracia mais poderosa do país; enfiou seu projeto goela abaixo da burguesia paulista e se firmou como um estadista da nossa história. A elite paulista jamais admitirá, mas ele foi o grande estadista do desenvolvimento nacional. CM - Haveria espaço para esse salto nas condições do capitalismo do século XXI?
Chico - A crise é tão grave que abre um período de suspensão do hegemon; não sua derrocada, mas um hiato para lamber as próprias feridas. Isso tomará boa parte do tempo e das energias desse Obama, em relação ao qual, diga-se, não compartilho do otimismo de muita gente de esquerda. Mas o fato é que ele estará ocupado e com uma quantidade apreciável de problemas. Abre-se um espaço, portanto. Talvez até mais que isso: haveria uma potencial complementariedade de interesses se tivéssemos aqui um arranque de investimento público pesado. Isso de certa forma repercutiria positivamente no coração da economia norte-americana. Estamos diante de uma fresta histórica: uma suspensão do hegemon e um espaço de complementariedade para remar na mesma direção, o que poderá favorecer os dois lados a sair do buraco...
CM - Internamente a elite talvez não veja as coisas assim, como propriamente complementares, quando se associa crescimento a um arranque pesado de investimento público.
Chico – Nossa burguesia se transformou em gangue. Expoentes nativos são figuras do calibre de um Daniel Dantas ou esse Eike Batista que opera dos dois lados da fronteira boliviana; não se pode contar com protagonistas dessa qualidade para qualquer coisa, menos ainda para uma agenda de desenvolvimento. Não há saída por aí. Mas o Brasil também não teria saído da crise de 30 se Vargas fosse esperar a mão estendida da plutocracia de São Paulo, por exemplo. Ele ocupou o espaço e fez.
CM - Logo...
Chico – Logo precisaria reinventar o PT; um PT com a ousadia de um Kubitschek e de um Vargas; para fazer por baixo o que eles tentaram e fizeram por cima; um arranque do desenvolvimento induzido pela base social para mudar a economia e a sociedade. Cinco EMBRAERs por ano e ponto final.
CM – O senhor acredita nesse aggiornamento do PT?
Chico - Se depender de torcida para que aconteça tem a minha. A lógica de acomodação de forças que a crise mundial impõe é de dimensões tão brutais, tão inauditas que exige da esquerda brasileira um desassombro igualmente inusitado.
CM - E os recursos para esse ciclo de investimentos pesados?
Chico - O PT tem a base sindical e a base sindical tem o controle de todos os fundos de pensão (NR: os fundos de pensão aplicam apenas na dívida pública federal recursos da ordem de R$ 155 bilhões de reais). Então tem recursos para serem remanejados e repactuados com a base trabalhadora; dentro dela o PT desfruta igualmente de massa e representatividade.
CM - Essa é uma agenda para 2010?
Chico - É uma questão delicada para ser tratada num debate aberto; sem oficialismos de uns, nem preconceitos de outros. A história brasileira repete um impasse do desenvolvimento que não pode ser respondido com uma farsa porque seu resultado seria uma tragédia. Dessa vez o que se vislumbra como possível, repito, é fazer por baixo, com bases sociais existentes, e organizações disponíveis, aquilo que nos anos 30 e nos anos 50 se fez por cima: destravar o desenvolvimento e expandir o mercado interno. É preciso tratar isso com cuidado, insisto, sem oficialismos do PT, nem o sectarismo do Psol e do PSTU.
CM – A candidatura de Dilma Roussef pode oferecer a amarração a esse esforço?
Chico - Honestamente não conheço a ministra Dilma, exceto pelo que leio da má vontade explícita da mídia em relação a ela. Torço para que seja aquilo que amigos petistas dizem que é. Ou então, que seja alguém como o Gabrielli, o presidente da Petrobrás, que certamente também sabe o que está em jogo e as variáveis para sair da crise. Trata-se de articular uma coalizão de forças dentro da qual o PT seria o operador porque é quem tem massa e liderança eleitoral; os grupos à esquerda teriam seu papel de ponta-de–lança. O fundamental é ter um debate com muita abertura e sem preconceitos.
CM - Se a crise se agravar há risco de a oposição ganhar terreno e viabilizar uma vitória de Serra?
Chico - Serra antes de ser um personagem político é um caso psiquiátrico. Qual é o seu projeto afinal? É a obsessão pessoal e doentia pelo poder. Diante de uma crise da proporção que temos pela frente, porém, se você não avançar será soterrado por manifestações mórbidas. A pá de cal viria na forma de uma vitória tucana em 2010; aí sim estaríamos todos fritos. Eles ficariam aí por mais dez anos.